29 março 2024

400 reais para respirar mais quatro horas em Manaus

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Familiares de enfermos con graves problemas respiratorios hacen cola ante una empresa que rellena los cilindros con oxígeno en Manaos el pasado martes.BRUNO KELLY / REUTERS

O segurança com colete à prova de balas que corre seguido por uma mulher segura com extrema delicadeza o cilindro azul, como se fosse um bebê. É oxigênio. Os dois avançam sob um sol abrasador a um carro. “É para minha mãe”, responde Afra Benedito, de 46 anos. Conta angustiada que o botijão ajudará a senhora Fátima a respirar por mais quatro horas. Com 71 anos, o coronavírus a deixou viúva dias atrás e agora extingue sua vida em Manaus, a capital do Amazonas, onde o pesadelo de morrer asfixiado se transformou em crua realidade em hospitais e casas.

A promotoria estadual investiga mais de 50 mortes nessas terríveis circunstâncias. “Um número extremamente conservador”, alerta o epidemiologista Jesem Orellana, da Fiocruz no Estado. Desde as festas de final de ano as hospitalizações por covid-19 vinham aumentando, mas de repente dispararam. Na noite de 14 para 15 de janeiro a acumulação de pacientes foi tamanha que vários hospitais ficaram literalmente sem oxigênio nessa remota cidade de dois milhões de habitantes incrustada na mais valorizada floresta tropical do mundo.

“Com as gripes da época de chuvas e os comícios da campanha eleitoral [municipal], já esperávamos o aumento de contágios, mas o do oxigênio não”, diz o enfermeiro Yuri, de 24 anos, do Hospital 28 de Agosto, referência para covid-19. Escolhe esse pseudônimo para falar com liberdade sobre o que acontece em seu local de trabalho. “Uns morrem por falta de oxigênio, outros porque estão muito graves e pioram rapidamente. Precisamos reduzir o oxigênio de todos porque quase 90% dos internados necessitam”, afirma. Calcula que mais de 30 pacientes morreram. Perto, parentes desesperados esperam novidades.

É uma terra de monopólios, caciques e corrupção arraigada que vive em boa medida da zona franca com multinacionais que precisam de uma logística minuciosa. Em Manaus chegam peças de todo o Brasil e do exterior que, montadas, saem ao mercado local e internacional transformadas em motos, celulares e notebooks. Mas fica sem oxigênio.

Paciente de coronavírus no improvisado pronto-socorro que sua filha montou para ele em casa, nesta quarta-feira, em Manaus.BRUNO KELLY / REUTERS

Manaus é, como na primeira onda, o exemplo mais grave da caótica gestão da pandemia no Brasil. O presidente Jair Bolsonaro não parou de sabotar os esforços dos governadores para contê-la. A vacinação acaba de começar, atrasada em relação aos seus vizinhos. Um estudo acadêmico publicado em primeira mão pelo EL PAÍS o acusa de liderar “uma estratégia institucional de propagação do vírus”.

Os que podem se lançaram na corrida para conseguir oxigênio por sua conta, aflorando um novo mercado na capital amazônica. Benedito superou o primeiro desafio ―conseguir o cilindro― graças a uma vizinha. Diariamente vai em busca de fornecimento para sua mãe na Carboxi, uma empresa familiar de gases industriais que começou a atender angustiados particulares que bateram na porta. Os 400 reais da recarga mínima significam uma dinheirama.

Em Manaus e no restante do Amazonas, a segunda onda é ainda mais devastadora do que a primeira, quando o sistema sanitário e funerário colapsaram. A cidade enterrou 213 moradores no dia seguinte à noite sem oxigênio. Nunca houve tantos. No cemitério só lembram de avalanches parecidas após algum motim carcerário.

A Venezuela foi um dos primeiros a responder ao SOS lançado pelo governador do Amazonas, Wilson Lima, um ex-apresentador de programas sensacionalistas aliado de Bolsonaro. O Governo de Nicolás Maduro se apressou a enviar ajuda em caminhões. Demoraram três dias para transportar oxigênio suficiente para três dias.

A rede sanitária do Amazonas é a de pior financiamento do Brasil, mas foi o primeiro Estado a reabrir as escolas, os leitos extras para covid-19 foram desmontados e os alertas da White Martins, a única empresa que fornece oxigênio aos hospitais, de que a demanda aumentava muito acima de sua capacidade de produção, não foram ouvidos. Quando esteve em Manaus dias antes da noite letal, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello (general e supostamente especialista em logística), foi informado da escassez por vias oficiais, e por uma cunhada, como ele contou. Não agiu. Agora, será investigado, a pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras.

O toque de recolher noturno não é respeitado. Bares clandestinos funcionam. As autoridades também tentam procurar oxigênio aqui e ali enquanto evacuam doentes a outros Estados em aviões militares. Os médicos racionam o oxigênio porque a demanda triplica a oferta na capital, a única cidade do Amazonas com cuidados intensivos. Famílias procuram botijões porque não querem levar seus doentes aos hospitais, lotados, com pacientes em redes.

Érica Nogueira, de 44 anos, chega com dois imensos cilindros em busca de salvação para seu sogro, seu marido e seu cunhado. Transborda indignação: “O que vocês estão vendo não é nem a metade do que está acontecendo. Tenho médicos, fisioterapeutas da família na linha de frente”, alerta aos jornalistas. “Tudo isso é uma incompetência imensa da administração pública. A grande responsabilidade é do governador, do prefeito, do Governo, que não se cercaram de pessoas competentes”. As redes ardem com pessoas que imploram ajuda.

Entre os falecidos por covid-19 nessa sexta-feira está o pai de Paulo de Assis, 46 anos. É enterrado em um funeral a toda pressa na área para as vítimas do coronavírus. Tinha 70 anos e boa saúde até que cinco dias atrás “ficou cansado e sem ar”. Foi hospitalizado. “De noite baixavam sua quantidade de oxigênio. No segundo dia estava bem, depois piorou. E hoje morreu”. Os coveiros continuam abrindo covas, mas agora com escavadoras. Nessa terra vermelha cercada pela floresta amazônica já quase não resta espaço. E constroem tumbas verticais, uma novidade que os locais não gostam. Ainda não estrearam.

Enterro de uma vítima de covid-19 em um cemitério de Manaus em 13 de janeiro.MICHAEL DANTAS / AFP

A cepa amazônica

O epidemiologista Orellana alerta por telefone que “o oxigênio não resolve o problema da covid-19”. Afirma que é impossível controlar “o vírus sem um confinamento rígido de 21 dias” e alerta sobre uma futura terceira onda. Uma nova cepa amazônica descoberta em turistas vindos de Manaus ao Japão levou o Reino Unido e outros países a suspender os voos do Brasil, e o restante da América Latina e Portugal. O cientista explica o que se sabe sobre essa variante que compartilha características genéticas com as cepas britânica e sul-africana. “Sua capacidade de infectar as células é maior do que as outras onze cepas que conhecemos no Estado do Amazonas”, diz, mas frisa que por enquanto não se pode afirmar que cause danos maiores.

A segunda onda desmente que Manaus atingiu a imunidade de rebanho há meses, como apontou um estudo científico preliminar. Aquele artigo foi “fruto da má ciência. Sempre foi uma tese absurda e alheia à realidade”, diz Orellana.

 

El Pais

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