Apesar de serem pesquisadas há décadas, as vacinas de mRNA fizeram sua “estreia” em larga escala entre o final de 2020 e o início de 2021, como uma das opções para prevenir a Covid-19 e ajudar a acabar com a pandemia.
Mas a chegada de produtos novos baseados em informações genéticas, como os imunizantes desenvolvidos pelas farmacêuticas Pfizer/BioNTech e Moderna, deixou algumas pessoas com a pulga atrás da orelha: será que eles não podem mexer no nosso DNA ou causar efeitos colaterais de longo prazo, como o surgimento de um câncer?
Embora essas perguntas sejam legítimas e a ciência já tenha respostas bastante satisfatórias para elas, esse cenário de incertezas serviu de pretexto para o surgimento de boatos, que chegam até a desencorajar algumas pessoas a tomarem essas doses.
“Não adianta: quem é contra as vacinas sempre vai achar algum argumento ou teoria da conspiração para lançar dúvidas na cabeça das pessoas”, lamenta a imunologista Cristina Bonorino, da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre.
Mas não precisa ficar preocupado: essas vacinas não chegam nem perto do nosso DNA e os estudos demonstram que elas são bastante seguras, afirmam especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
Mas para entender como os cientistas conseguem fazer afirmações do tipo, é preciso dar alguns passos para trás e explicar um aspecto bem interessante sobre o funcionamento de nosso corpo.
Todas as nossas características físicas (e até algumas psicológicas) são determinadas pelo DNA, um conjunto de bilhões e bilhões de bases nitrogenadas organizadas em 46 cromossomos, que estão guardados no núcleo de todas as células que compõem nosso corpo.
E nosso genoma é dotado de uma simplicidade fascinante: ele é composto de apenas quatro tipos diferentes de bases nitrogenadas (conhecidas pelas letras A, T, C, G), que geram sequências intermináveis e determinam a cor do cabelo, a altura, o funcionamento do intestino grosso e até a propensão a desenvolver um tumor ou uma doença neurodegenerativa.
O funcionamento do nosso corpo é basicamente regido pelo código genético: quando uma célula do estômago precisa secretar uma substância ácida, que vai ajudar na digestão de um alimento, por exemplo, a sequência de genes responsável por essa função se manifesta no local e dita o que deve ser feito.
Para que isso ocorra dentro do esperado, esse pequeno trecho do código genético responsável por essa “tarefa” cria uma fita de RNA mensageiro, que sai do núcleo da célula e se dirige para uma estrutura chamada ribossomo.
É justamente ali que esse tal de RNA mensageiro (ou mRNA para os íntimos) é interpretado e gera uma reação em cadeia para chegar a uma resposta adequada — seguindo no nosso exemplo anterior, será a partir daqui que a célula gástrica vai produzir o ácido digestivo.
Mas o que isso tem a ver com as vacinas? Bem, você se lembra que os imunizantes de Pfizer/BioNTech e Moderna se baseiam justamente na tecnologia de mRNA?
É isso mesmo: esses produtos são feitos a partir de uma fita de RNA mensageiro criada em laboratório.
Os especialistas montaram uma sequência genética com instruções detalhadas para que as nossas próprias células, a partir do contato com esse mRNA específico, sejam capazes de fabricar a proteína S, que está presente na espícula do coronavírus.
Essa espícula (ou spike, em inglês, de onde deriva o “S”) é uma estrutura que fica na superfície do vírus e permite que ele se conecte com receptores das nossas células e dê início à infecção.
Quando tomamos as doses dessas vacinas, portanto, esse mRNA entra nas células e vai até o ribossomo, que lê aqueles comandos e desencadeia a produção da proteína S.
“É como se essas vacinas trouxessem uma receita que ensina nossas células a preparar um determinado produto”, compara o imunologista Carlos Zárate-Bladés, pesquisador do Laboratório de Imunorregulação da Universidade Federal de Santa Catarina.
Quando está pronta, essa proteína S sai das células e é detectada pelo sistema imunológico, que vai gerar anticorpos contra ela.
Assim, o organismo fica “treinado” e sabe como reagir numa situação real: caso um coronavírus de verdade apareça, as células de defesa já conhecem a espícula e sabem como lidar com ela antes que a invasão seja consumada.
E isso, por sua vez, vai prevenir o surgimento dos sintomas ou a evolução do quadro para estágios mais complicados da Covid-19, que exigem internação e intubação.
Toda essa explicação nos sinaliza uma coisa muito importante: o RNA mensageiro da vacina de Pfizer/BioNTech ou Moderna não chega nem perto do núcleo de nossas células, onde está guardado nosso DNA.
“Depois de usadas, essas moléculas [o mRNA] acabam degradadas e não são mais encontradas no organismo após dois a sete dias”, estima Zárate-Bladés
“E não há risco nenhum de interação entre esse mRNA e nosso DNA, pois o genoma está protegido no núcleo das células”, reforça Bonorino, que também integra a Sociedade Brasileira de Imunologia.
Considerando então que essas vacinas não interagem diretamente no nosso código genético, também não há perigo de elas provocarem o surgimento de um câncer, como acusam algumas das teorias da conspiração divulgadas por aí.
Outro argumento comum em correntes de WhatsApp e conteúdos falsos nas redes sociais é o de que esses produtos são muito novos e a ciência não possui experiência suficiente para justificar seu uso em bilhões de seres humanos.
Sim, é verdade que essa é a primeira vez que as vacinas de mRNA são aprovadas para uso em larga escala e seu processo de desenvolvimento e aprovação aconteceu em tempo recorde.
Mas pouca gente sabe que essa tecnologia é estudada há muitas décadas.
“Nos anos 1950, quando se descobriu a estrutura do DNA, alguns grupos de pesquisa já avaliavam a possibilidade de manipular material genético e, a partir disso, obter tratamentos, imunizantes e maneiras de consertar mutações”, recapitula Zárate-Bladés.
As vacinas de mRNA se tornaram uma realidade palpável ainda na década de 1990 e diversos protótipos já foram desenvolvidos para fazer frente a outras doenças, como gripe, zika, raiva, catapora e herpes.
O grande desafio, explica Bonorino, era desenvolver uma fórmula estável e com capacidade de gerar uma resposta imune forte e duradoura.
Isso só foi obtido mais recentemente, graças aos esforços de inúmeros cientistas e aos investimentos em pesquisa.
Mas a infectologia não é a única área a se beneficiar dessa ferramenta: desde 2010, especialistas em oncologia estão criando terapias baseadas no RNA mensageiro para tratar alguns tipos de câncer.
Os especialistas, portanto, possuem muita experiência nessa área.
Outro ponto que traz alívio é o fato de diferentes agências regulatórias, como a Anvisa do Brasil, terem aprovado as vacinas e se mostrado bastante confiantes sobre seu uso nas campanhas.
Apesar de todas essas informações, os envolvidos nesse processo seguem atentos e acompanham dezenas milhares de pessoas já vacinadas.
Essa é a chamada fase 4 da pesquisa clínica e acontece depois da liberação para uso em diferentes países.
Caso qualquer efeito colateral seja notado, os especialistas e os órgãos de controle e fiscalização serão os primeiros a saber e notificar para toda a sociedade.
Mas tudo indica que um cenário desses é bastante improvável diante de todas as evidências disponíveis até o momento.
Um último ponto importante para entender as vacinas de mRNA é saber os efeitos colaterais que ela pode causar no nosso corpo.
No geral, as reações mais comuns são dor no local da aplicação e um pouco de febre. Algumas pessoas também podem sentir calafrios, dor de cabeça e incômodos musculares.
Mas a boa notícia é que essas sensações costumam durar no máximo dois ou três dias e logo se resolvem.
Vale notar, inclusive, que um cenário muito parecido se repete com outros tipos de imunizantes, como aqueles de vírus inativados, caso da CoronaVac, e os de vetor viral não replicante, como a AZD1222, de AstraZeneca e Universidade de Oxford.
Por isso, nem adianta escolher ou preferir algum tipo de vacina: quando chegar a sua vez, tome a dose que estiver disponível na hora, é o que recomendam especialistas da saúde. Todas as opções tiveram a eficácia e a segurança comprovadas e foram liberadas pela Anvisa.
Essas reações pós-vacinação podem até não ser muito agradáveis, mas elas representam um sinal de que o sistema imune está reagindo e gerando uma resposta satisfatória.
É por isso que os médicos só sugerem o uso de remédios, como anti-inflamatórios e antitérmicos, quando os sintomas estão muito fortes mesmo — uma febre baixa não justifica o uso de dipirona, por exemplo.
“E aquelas pessoas que foram imunizadas e não sentem nenhum incômodo também não precisam ficar preocupadas. Isso não significa que a vacina não funcionou nelas, pois cada sistema imune reage de uma maneira diferente”, esclarece Bonorino.
E, claro, aquela clássica recomendação do final das propagandas de medicamentos continua a valer: se persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado.
Ou seja, caso os incômodos não melhorem após dois ou três dias, ou se surgirem outras manifestações, vale procurar um especialista ou o posto de saúde onde você tomou a dose para uma investigação mais detalhada e para receber orientações personalizadas.