O aplicativo Uber Eats deixará de fazer delivery de refeições no Brasil, abrindo mão da distante vice-liderança de um mercado que tende a ficar ainda mais concentrado no iFood. Lamentada pelo setor de restaurantes, a decisão aumenta a pressão sobre o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que analisa ação na qual Rappi e a própria Uber acusam o iFood de “práticas anticompetitivas.”
De acordo com a Uber, a última entrega de restaurante do Eats será em 7 de março. O app continuará existindo, mas focado apenas no delivery de compras de supermercado (Cornershop) e de pacotes (Uber Flash), além de um serviço corporativo (Uber Direct).
A empresa não explica por que vai desativar o serviço justamente no momento em que a pandemia fez explodir o mercado de delivery, mas a decisão se insere em uma estratégia global de cortar operações deficitárias em mercados onde não é líder. Em maio de 2020, o Eats saiu de oito países de uma só vez, como Uruguai, Ucrânia e República Tcheca. Poucos meses depois, abandonou Argentina e Colômbia. O serviço, que funcionava no Brasil desde 2016, está disponível em 45 países.
De acordo com a start-up de dados Measurable AI, o Uber Eats chegou a atingir fatia de mercado de 25% no começo da pandemia no Brasil, mas o iFood recuperou participação. Em junho passado, o Uber respondia por apenas 13%. O iFood aparece com 83%, enquanto o Rappi tem 4%.
O mercado de delivery é intensivo em capital, com as plataformas queimando caixa em anúncios e promoções para atrair clientes e restaurantes. A lógica é descrita por especialistas como “winner takes all” (o vencedor leva tudo), na qual a corrida é por uma hegemonia que, lá na frente, eliminará toda concorrência. Enquanto não chegam nesse patamar, as plataformas abrem mão do lucro. De acordo com fontes de mercado, a Uber parece ter avaliado que dificilmente reverteria a posição de dominância do iFood e, logo, a queima de caixa seria em vão.
— Talvez a Uber tenha avaliado que, para atingir a participação de mercado que buscava, o volume de capital necessário não faria mais sentido, ainda mais quando não há qualquer garantia de retorno — disse André Mortari, sócio da Let’s Delivery, que gerencia o relacionamento de restaurantes com diferentes apps.
Ao mesmo tempo, o negócio de caronas — que também é deficitário e enfrenta uma concorrente bem capitalizada na 99 — se tornou mais desafiador no último ano, com a disparada dos combustíveis tornando os motoristas menos dispostos a aceitar corridas.
— São muitas frentes, acaba sendo difícil de enfrentar todas elas. Na pandemia, o iFood capturou ainda mais mercado e de maneira muito agressiva. A Uber fez as contas e decidiu se concentrar naquilo que tem se dado melhor — diz Luciano Timm, advogado e professor de direito econômico da FGV-SP.
A Uber participa de ação no Cade, aberta em 2020 pela Rappi. Uma das queixas mira contratos de exclusividade de restaurantes com o iFood. Estima-se que 9% dos restaurantes na plataforma estejam sob esses contratos
O caso ainda não foi julgado, mas em março o órgão proibiu provisoriamente o iFood de firmar novas exclusividades, embora não tenha derrubado os contratos já em vigor. Em nota, a Rappi disse que a decisão “trouxe inegáveis impactos positivos”, mas ponderou que a saída do Uber Eats exige medidas mais substanciais:
“O Rappi deposita sua total confiança e expectativa na melhor avaliação concorrencial do órgão a favor do mercado como um todo, a fim de garantir a eficácia e efetividade de suas decisões frente a eventos como a saída do segundo mais relevante player.”
Entre advogados, o consenso é que o andamento do processo tem sido lento.
— Foi uma surpresa essa notícia, que recebemos com desalento. Vai na contramão de tudo o que a gente precisa, que é reduzir a dependência do iFood. A Uber é o segundo maior aplicativo para o setor, mas não consegue competir por causa dos contratos de exclusividade, que lesam todo o setor. O Cade precisa agir urgentemente — reclama Paulo Solmucci, presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), que é parte no processo.
Segundo ele, em troca da exclusividade, o iFood oferece taxas menores e maior visibilidade a grandes redes de restaurantes, prejudicando os menores. Além das taxas altas, que podem chegar a 30% do valor dos pedidos, a Abrasel reclama ainda da obrigatoriedade de os restaurantes arcarem com promoções oferecidas pelo iFood ao consumidor final.
O iFood não quis comentar a saída da Uber, mas disse que “suas políticas comerciais estão em estrita conformidade com a legislação concorrencial e que segue cooperando com as autoridades.”
A saída do Uber Eats se dá um dia depois de o presidente Jair Bolsonaro sancionar projeto de lei que obriga apps de delivery a pagar auxílios a entregadores em casos de acidentes e contaminação por Covid-19. Não está claro, porém, se a legislação influenciou na decisão da Uber.
Segundo interlocutores, a decisão pegou de surpresa até funcionários do Uber Eats no Brasil, que há poucos dias mantinham reuniões com parceiros sobre futuras estratégias de negócio.
Globalmente, o delivery já é um negócio mais importante para a Uber do que as caronas, movimentando US$ 12,8 bilhões no terceiro trimestre de 2021 — alta anual de 50%.