O Estado de S. Paulo
A votação do projeto de lei que aprovou os jogos de azar no Brasil expôs com todas as letras o racha na base aliada do governo de Jair Bolsonaro. Deputados que compõem a Frente Parlamentar Evangélica se sentiram abandonados e até mesmo traídos pelo Palácio do Planalto. A avaliação desses apoiadores é a de que Bolsonaro pode perder apoio de religiosos nas eleições de outubro, caso não barre o avanço da proposta.
Bolsonaro diz que tentou barrar jogos de azar, mas ressaltou ‘ter limite’
O projeto ainda precisará passar pelo crivo do Senado, mas lá, ao que tudo indica, enfrentará mais resistências, embora o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho “01” do presidente, seja favorável à legalização dos jogos de azar.
“O presidente Bolsonaro precisa rever o governo dele, que está minado ideologicamente”, disse ao Estadão o deputado Sóstenes Cavalcante (União Brasil-RJ), presidente da Frente Parlamentar Evangélica. Sóstenes citou o presidente da Câmara, Arthur Lira (AL), o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, e o líder do governo na Casa, Ricardo Barros (PR), como os principais responsáveis pela aprovação do projeto que legalizou cassinos, jogo do bicho e bingos no País, na madrugada desta quinta-feira, 24. “Os três são do partido Progressistas. Ciro, por exemplo, tem o governo na mão e operou de dentro do Planalto. O presidente precisa saber escolher melhor quem põe do lado dele”, criticou.
Sóstenes isentou Bolsonaro do resultado final, sob o argumento de que ele não entra no varejo das articulações políticas. Não foi este, porém, o diagnóstico de outros aliados do governo, ouvidos pelo Estadão. Diante da ofensiva do Centrão, parlamentares contrários ao projeto não conseguiram emplacar nem mesmo os chamados “destaques” para alterar os pontos principais do texto aprovado.
“Isso é uma vergonha, minha gente! Nós vamos ver os partidos e deputados que votaram (para na próxima) eleição agora dizer não”, afirmou o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo. No dia 8 de março, Bolsonaro pretende reunir os 100 principais líderes de igrejas evangélicas para um café no Palácio da Alvorada. O Estadão apurou que pastores vão dizer ao presidente que, se ele não se posicionar de forma mais contundente contra a legalização da jogatina, terá grande prejuízo eleitoral.
A cúpula do Republicanos, partido ligado à Igreja Universal do Reino de Deus, aproveitou o episódio para se desgarrar ainda mais de Bolsonaro. A legenda vem há tempos descontente com o Planalto, sob a alegação de que o presidente não só dá prioridade ao PL de Valdemar Costa Neto e ao Progressistas de Arthur Lira na distribuição de cargos como tenta um “ataque especulativo” para levar seus parlamentares. “Até agora, o presidente só atrapalhou”, disse o deputado Marcos Pereira (SP), que comanda o Republicanos. “Mas, mesmo assim, vamos crescer.”
Em conversas reservadas, deputados da base governista observam que, se Bolsonaro tivesse entrado na briga, o projeto que legaliza os jogos de azar teria sido derrubado no plenário da Câmara. Para exemplificar esse raciocínio, citam o placar apertado. Foram 246 votos a favor da proposta, 202 contrários e 3 abstenções. Na prática, o Planalto conduziu a estratégia para liberar o voto porque uma poderosa ala do Centrão – capitaneada por Lira – é favorável aos cassinos e jogo do bicho, proibidos no Brasil desde 1946.
Não foi apenas Ciro Nogueira, no entanto, que trabalhou pela aprovação do projeto. Os ministros Paulo Guedes (Economia) e Gilson Machado (Turismo) também deram sinal verde para a proposta. O argumento de boa parte do governo é o de que a abertura de cassinos, por exemplo, estimula a economia e favorece o turismo. Os evangélicos, por sua vez, dizem que a prática destrói a família, além de favorecer o narcotráfico e a lavagem de dinheiro.
“O Brasil não tem ferramentas para coibir o uso dos cassinos para lavagem de dinheiro. O crime organizado poderá ser beneficiado”, destacou Roberto Livianu, procurador do Ministério Público de São Paulo e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, em postagem no Twitter.
No Senado, o ambiente é hostil a esse tema. O primeiro desafio será o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), pautar o projeto. “A Frente Evangélica vai para cima do Pacheco”, avisou Sóstenes. “Em política há troco e, assim como Arthur Lira perdeu uma avenida conosco para sua tentativa de se reeleger presidente da Câmara, no ano que vem, Pacheco precisa pensar nisso”, emendou o deputado.
Embora o presidente do PSD, Gilberto Kassab, queira lançar Pacheco como candidato à sucessão de Bolsonaro, o senador deve anunciar, depois do Carnaval, que não assumirá essa tarefa. O desejo de Pacheco, agora, é trabalhar por um novo mandato no comando do Senado, em 2023. “Pode escrever: ele só terá o apoio dos evangélicos se engavetar esse projeto dos jogos de azar”, ressalvou Sóstenes. Mas e Flávio Bolsonaro? “Ele já recuou”, disse o presidente da Frente Evangélica.
Na campanha de 2018, o então candidato Bolsonaro classificava como “mentira” acusações de que, se eleito, regularizaria os cassinos no Brasil. “Dá para acreditar numa mentira dessa? Nós sabemos que o cassino serviria como uma grande lavanderia, serviria para lavar dinheiro, e também para destruir as famílias”, afirmava ele. Agora, Bolsonaro diz que, se o projeto chegar às suas mãos, vetará. Avisou, porém, que sua caneta pode não ter tanto poder assim…