O escritório da Organização Mundial da Saúde (OMS) na China foi informado sobre casos de pneumonia de causa desconhecida, detectados na cidade de Wuhan, no dia 31 de dezembro de 2019.
Três dias depois, autoridades sanitárias chinesas notificaram 44 pacientes com a pneumonia de origem desconhecida à OMS. No dia 7 de janeiro de 2020, pesquisadores chineses conseguiram identificar que os casos estavam associados a um novo tipo de coronavírus.
Já no dia 12 de janeiro, a China compartilhou a sequência genética do vírus em bancos de dados internacionais para que os países pudessem desenvolver kits de diagnóstico específicos.
No dia 11 de março de 2020, a OMS declarou situação de pandemia pela abrangência global dos impactos causados pela Covid-19. À época, o diretor-geral Tedros Adhanom apontou que o mundo registrava mais de 118 mil casos e 4.291 mortes em 114 países.
Doenças respiratórias como a gripe, tuberculose e pneumonia já são amplamente conhecidas pela comunidade médica em todo o mundo. No entanto, a Covid-19 se mostrou um desafio para o tratamento de pacientes que apresentavam danos que iam além daqueles causados aos pulmões e ao trato respiratório.
Médica infectologista do Hospital Emílio Ribas, de São Paulo, Rosana Richtmann já esteve na linha de frente do combate a doenças como dengue, Zika, gripe e a infecção pelo HIV. Com a emergência da Covid-19, ela conta que os primeiros momentos da pandemia despertaram sentimentos de impotência e temor entre a comunidade médica especialmente pela perda de um elevado número de pacientes.
“Não conhecíamos o nosso inimigo, sabíamos o que ele causava a curto prazo, mas não sabíamos nada a médio e longo prazos até então. Nem imaginávamos questões como Covid longa ou síndrome pós-Covid. O que sabíamos naquele momento é que estavam sendo afetadas pessoas mais vulneráveis, então nem falávamos de crianças na época”, diz Rosana.
Diante da ausência de tratamentos específicos para a doença, os profissionais de saúde tentaram terapias experimentais com medicamentos existentes, como corticoides e até mesmo antibióticos.
“Começamos a conhecer e aprender a manejar a doença, isso foi muito interessante. Na UTI, nós discutíamos casos e começamos a entender o manejo do vírus para determinados pacientes, fazendo medidas de forma mais precoce, no sentido de tentar fazer com que esse paciente sobrevivesse”, afirma.
Segundo Rosana, novas informações sobre a epidemiologia da doença foram sendo adquiridas na prática, como a montagem de um grande quebra-cabeças.
Ao longo da pandemia, diversos medicamentos e tratamentos contra a Covid-19 foram descartados pela OMS, após a avaliação de dados científicos robustos que mostraram a ineficácia contra a doença, incluindo plasma convalescente, hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina.
O Ministério da Saúde foi procurado pela CNN para comentar diversas questões levantadas pelos especialistas mas, até o momento do fechamento desta reportagem, não respondeu.
No contexto de planejamento global para o enfrentamento de agravos, a OMS criou o conceito de “doença X“, que representa a necessidade de preparação para um agente causador de doença desconhecido, que poderia causar uma grave epidemia entre humanos.
Apesar do alerta, especialistas avaliam que a introdução da Covid-19 encontrou um mundo despreparado para a grande dimensão dos impactos da doença.
“A Covid-19 traz um alerta de que o mundo não pode continuar sendo surpreendido pelas novas epidemias, que sabemos que vão acontecer”, diz Margareth Dalcolmo, pneumologista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Nos primeiros meses da pandemia, o mundo se viu diante de uma competição entre os países por equipamentos de proteção individual, como máscaras, luvas e toucas médicas, além da busca acirrada por respiradores.
A concentração de cerca de 90% da produção global de EPIs pela China, que chegou a decretar medidas rígidas de restrição e lockdown em grandes metrópoles, agravou o cenário de aumento expressivo da demanda pelos equipamentos.
Segundo a virologista Marilda Siqueira, pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), a resposta dos países no início da pandemia refletiu os recursos financeiros disponíveis e a capacidade instalada de vigilância de cada um.
Ela destaca que até mesmo países desenvolvidos que contam com uma rede organizada de serviços de saúde e com empresas de biotecnologia avançada, como a Inglaterra e a Alemanha, apresentaram dificuldades naquele momento.
“Uma das lições aprendidas é que em termos tecnológicos, nós precisamos, como país, ter uma rápida produção nacional de vários itens necessários para uso em saúde pública, nos tornando menos dependentes do mercado externo”, pontua.
Para os especialistas, a pandemia de Covid-19 também destacou a necessidade do reforço no investimento público em ciência, tecnologia e inovação voltada à saúde.
A pesquisadora Ester Sabino, professora da Faculdade de Medicina e do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo, liderou o grupo que realizou o primeiro sequenciamento genômico do novo coronavírus no Brasil.
“Com o sequenciamento é possível saber qual é a linhagem do vírus. No início, tivemos que aprender como classificar o vírus e isso vem dos dados de sequenciamento que apontam como ele está se espalhando. A técnica permite também caracterizar as variantes de preocupação. À medida que aparecem novos medicamentos, o sequenciamento pode indicar se o vírus é resistente a esse medicamento”, disse.
Desde o início da pandemia, a OMS recomenda aos países que realizem a testagem e rastreamento de possíveis infectados como medida sanitária essencial para o enfrentamento da doença. A medida, que também contribui para o acompanhamento do cenário epidemiológico, é apontada como insuficiente no país por especialistas consultados pela CNN.
Nos primeiros meses de 2020, a equipe do Laboratório de Vírus Respiratórios e do Sarampo do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) realizou a capacitação dos capacitação dos profissionais que atuam na rede brasileira de Laboratórios Centrais de Saúde Pública para o diagnóstico laboratorial do SARS-CoV-2. Além disso, treinaram também especialistas de nove países da América Latina, incluindo Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Panamá, Paraguai, Peru e Uruguai.
Os pesquisadores avaliam que, embora o país tenha alcançado avanços significativos na capacidade de testagem, ainda enfrentou entraves na falta de insumos e de equipes para o processamento dos testes em tempo mais hábil.
“Estamos entre os países que menos testam por 100 mil habitantes. Não conseguimos monitorar, testar em tempo oportuno e nem fazer o isolamento de sintomáticos. Nunca fizemos isso, no início por falta de testes, depois por falta de capacidade de pessoal para a busca ativa e por falta de consciência da população”, afirmou o pesquisador Júlio Croda, da Fiocruz.
O desenvolvimento de uma vacina pode levar até dez anos. Embora as vacinas contra a Covid-19 tenham sido produzidas em prazo recorde, os imunizantes passaram por todas as etapas de testes clínicos que asseguram a eficácia e a segurança.
Pesquisadores explicam que a grande velocidade na criação das vacinas foi possível graças a estudos anteriores realizados com outros dois tipos de coronavírus, o SARS-CoV-1, responsável pela epidemia de SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave) em 2003, e o MERS-CoV, que provocou a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS), de forma mais restrita, em 2012.
As primeiras campanhas de vacinação contra a Covid-19 tiveram início em dezembro de 2020.
A britânica Margaret Keenan, de 90 anos, foi considerada a primeira pessoa no mundo a receber uma dose do imunizante contra a doença, da Pfizer, fora do contexto de ensaios clínicos, que asseguram a segurança e eficácia. A vacinação ocorreu no dia 8 de dezembro em um hospital na cidade de Coventry, no centro da Inglaterra.
No Brasil, a campanha de imunização teve início no dia 17 de janeiro de 2021, com a aplicação de uma dose da CoronaVac na enfermeira Mônica Calazans, de 54 anos.
O diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Renato Kfouri, lembra que o início da vacinação no país coincidiu com o aumento significativo de casos e de óbitos pela variante Gama, identificada em Manaus, no Amazonas.
Desde o início das campanhas de vacinação contra a Covid-19 pelo mundo, a OMS tem defendido a distribuição igualitárias das doses entre países ricos e pobres. Segundo a OMS, a distribuição desigual de vacinas consiste em uma ameaça global ao permitir que o vírus se espalhe, aumentando as chances do surgimento de novas variantes que podem ameaçar a eficácia dos imunizantes desenvolvidos.
Enquanto países avançam para a aplicação da quarta dose contra a doença, nações pobres enfrentam a escassez de imunizantes, dependendo da doação de iniciativas como o consórcio Covax Facility.
Segundo Kfouri, ainda não é possível estimar se serão necessárias doses adicionais contra a Covid-19 com o passar do tempo. “É factível vacinar a população de tempos em tempos, mas ainda não sabemos se é necessário”, afirma.
Ele afirma que a indústria farmacêutica continuará realizando o monitoramento do contexto epidemiológico e atualizando a formulação das vacinas, quando necessário, diante de novas variantes do coronavírus.
Especialistas em saúde pública ponderam que, no caso da Covid-19, tem sido difícil realizar estimativas sobre o fim da pandemia, devido às características do vírus, à desigualdade das coberturas vacinais pelo mundo e às variantes virais que continuam surgindo.
O sanitarista Gonzalo Vecina, ex-diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a pandemia como conhecemos nos últimos dois anos poderá perder a força nos próximos meses. “A pandemia se alimenta da capacidade do vírus de atacar as pessoas suscetíveis, elas estão desaparecendo, por sua vez. A Ômicron foi muito rápida na sua capacidade de espalhamento pelo Brasil. Hoje, diminuiu muito o número de casos”, afirma.
O surgimento de uma nova variante, com alta capacidade de transmissão, é uma das maiores preocupações de virologistas e epidemiologistas em todo o mundo.
“A crise sanitária poderia ser realimentada se nós tivéssemos o aparecimento de uma nova variante. Existe a probabilidade de aparecer, mas neste momento ela é pequena, dada a quantidade de mutações que uma nova variante teria que apresentar para conseguir se sobrepor à Ômicron”, pontua Vecina.
Especialistas discutem se o próximo momento da Covid-19 poderá ser a transição de um status de pandemia para endemia, situação que considera a presença de uma doença de forma recorrente em uma região, mas sem apresentar aumentos significativos no número de casos.
A epidemiologista e professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Ethel Maciel, afirma que ainda não há um consenso entre a comunidade científica sobre o ponto de virada de uma condição pandêmica para endêmica.
“Ainda não temos um consenso mundial de quais seriam os indicadores de casos e de mortes para a definição de endemia em relação à Covid-19. O vírus vai continuar entre nós, ainda vamos ter casos e óbitos. Porém, muito provavelmente essas mortes vão acontecer entre as pessoas vulneráveis, em geral idosos e pessoas que têm outras comorbidades, e não em pessoas vacinadas e que são imunocompetentes”, disse.
A pesquisadora da Fiocruz, Margareth Dalcolmo, afirma acreditar que não serão necessárias campanhas anuais de imunização contra a Covid-19, a exemplo do que ocorre com o vírus da gripe para pessoas mais suscetíveis, como idosos, crianças e gestantes.
“Não acho que o SARS-CoV-2 será um patógeno que vá permanecer entre nós exigindo revacinações anuais. Acho que, apesar da sua pandemicidade, a doença vai se comportar com uma redução paulatina, respondendo ao impacto que as vacinas, em três doses aplicadas, vai resultar e, provavelmente, vamos precisar de uma quarta dose, um novo reforço para todo mundo acima de 18 anos”, diz.
Peste bubônica, varíola, cólera, gripe. Ao longo da história, a humanidade se viu diante de diferentes doenças capazes de se espalhar pelo mundo, causando um grande número de casos e mortes.
A mais recente pandemia, anterior à Covid-19, foi a de gripe em 2009, causada pelo vírus influenza A (H1N1). O episódio, que ficou conhecido como “gripe suína” à época, provocou a morte de 151 mil a 575 mil pessoas em todo o mundo, de acordo com um estudo publicado por pesquisadores dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos, no periódico científico Lancet Infectious Diseases, em 2012.
Cerca de dez anos depois, o mundo acompanhou com perplexidade o fechamento de fronteiras, do comércio e de escolas, e a superlotação dos serviços de saúde em países ricos e pobres.
O pesquisador Gonzalo Vecina defende a criação no Brasil de um centro nacional de controle de doenças, aos moldes da instituição nos Estados Unidos. Ele destaca o papel de descentralização do atendimento para estados e municípios com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), mas pondera que ainda faltam investimentos na infraestrutura dos serviços, especialmente em municípios pequenos.
“A maioria dos países mais desenvolvidos que o Brasil têm o seu CDC, basicamente um centro que se preocupa em fazer estatísticas de saúde populacional, analisar o que acontece em grandes grupos populacionais, com grande capacidade de fazer sequenciamento genômico de microrganismos, sejam vírus, bactérias ou fungos, e a vigilância da ocorrência de novos infectantes”, diz Vecina.