Por ossos do ofício, entrei para assistir ao vídeo-desabafo do cantor Gusttavo Lima em suas redes sociais e saí de lá com algumas impressões. A primeira delas é que os brutos também choram. Mas não só.
Na live, o autor de “Balada (Tchê tcherere tchê tchê)” — favor não confundir com “Eu quero tchu, eu quero tcha” — disse que sua vida sempre foi trabalhar. Lembrou que em um ano fez quase 300 shows, que possui uma equipe gigantesca de colaboradores e funcionários e que eles precisam ser remunerados.
A certa altura, disse também que sua música era um trabalho como qualquer outro. E que, como qualquer outra pessoa, precisa cobrar um valor de quem o contrata, não importa se o contratante é uma prefeitura de parco orçamento e poucos habitantes.
Se alguém fechar os olhos, notará no depoimento os mesmíssimos e igualmente justos argumentos usados aos gritos e há anos por qualquer peão da classe artística brasileira, entre cineastas, dramaturgos, atores e atrizes, dançarinos e músicos, que não fazem outra coisa a não ser se defender de ataques promovidos pelos grupos conservadores que têm em Jair Bolsonaro um ídolo. Como se fossem eles, os artistas sob ataque que lutam como podem para sobreviver, os glutões das mamatas e das tetas lesadas do orçamento público.
A fala de Gusttavo Lima, goste-se dele ou não, foi didática. Didática para qualquer um que, a essa altura, não percebeu ainda a burrice que é associar o trabalho artístico a um suposto privilégio.
↗ A vitimização da cafajestagem sertaneja: “Perseguição é porque não somos de esquerda”
Mas a fala é didática principalmente por desenhar muitos dos impasses de dois países coabitantes em um mesmo território que mal se conhecem e que hoje se desprezam.
Seria ingênuo, além de incompleto, supor que esses países se dividem apenas territorialmente entre o campo e a cidade, interior e capital. Mas visualizar o tipo ideal weberiano da querela é tentador.
Os meninos da pecuária não gostam da Anitta nem dos moderninhos da cidade grande e vice-versa. Isso já entendemos.
Mas essa querela começou quando o sertanejo Zé Neto, da dupla com Cristiano, resolveu desferir, meio que do nada, uma pedrada em direção a Anitta, que estava quieta em seu canto no ranking das artistas mais ouvidas no Spotify.
Em uma apresentação, o cantor disse que não precisava fazer tatuagem no “tororó” para obter sucesso e que seu cachê era pago pelos fãs, não por verbas (legítimas, aliás) decorrentes de leis de incentivo à cultura por renúncia fiscal. A fala vale um verbete inteiro da definição de hipocrisia. O cachê do cantor, como tantos, foi pago pela prefeitura.
Desde então Zé Neto se tornou o símbolo do tipo ideal bolsonarista: o tipo meio estúpido, bruto, um tanto rancoroso com o sucesso de uma mulher no mesmo mundo de atenção em disputa, ressentido, ignorante, jeca, armado e cínico. Cínico ou estúpido o suficiente para lançar em público uma crítica a uma prática da qual ele não abre mão.
Esse tipo ideal mirou no que viu e acertou no que não viu. Ele mirava, na verdade, um outro tipo ideal que no fundo despreza. Um tipo urbano (no caso, periférico), que ele pensa ser privilegiado, depravado, que não conhece as agruras que ele vive e/ou diz testemunhar no campo e que, para ele, é símbolo de uma devastação moral em razão de sua postura contestadora da chamada tradição conservadora (religiosa, monogâmica, obediente, atenta às figuras de autoridade etc.).
Gusttavo Lima entrou na história por tabela. Do cardume bolsonarista ele era o peixe maior.
E foi esse peixe grande que apareceu em público para dizer que seu trabalho era como outro qualquer. Que “não compactua com dinheiro público”, mas que todos os artistas já foram remunerados em algum momento com verba de prefeituras. (Tempos atrás se dizia o mesmo do uso de caixa 2, mas essa é outra discussão. Ou não?).
Enquanto ele falava, eu, que nasci, cresci e atualmente moro no interior, lembrei dos muitos shows, não só sertanejos, das feiras agropecuárias das cidades ou das cidades vizinhas onde morei.
Ninguém ali subia aos palcos dessas festas na brodagem nem ficou popular por conta dessas apresentações. Desconfio que eles ou elas já eram populares quando decidiram colocar o cachê nas alturas.
Não vou enveredar na discussão sobre se cabe ou não aos munícipes bancar a diversão da juventude de sua cidade, até porque me diverti bastante quando jovem. Até acho que não cabe — ainda assim, em feiras do tipo há sempre um valor, nem sempre simbólico, cobrado na entrada e patrocínios de quem aproveita a visibilidade da multidão para montar estande de sua empresa. Não é exatamente um fundo perdido, até que se prove o contrário.
De toda forma, não foi um sertanejo quem cantou que a gente não quer só comida, mas também diversão e arte. Pode parecer estranho hoje, mas até pouco tempo não era difícil ouvir versos assim num rodeio ou feira agropecuária.
Um amigo, inclusive, conheceu a namorada num evento do tipo durante um show do Capital Inicial. O Dinho Ouro Preto até usou o palco para mandar alguns políticos para o inferno. Como isso repercutiria hoje?
Bom, hoje há um terreno amplo à disposição das ciências sociais para entender como Gusttavo Lima, Zé Neto e companhia foram parar no colo do bolsonarismo a ponto de servir de bucha para propaganda oficial. Mas vai dar trabalho separar os dois ícones do tipo agro-reaça brasileiro das temáticas e outras figuras sertanejas que vão ao encontro do que eles vocalizam e juram representar. Ou Marília Mendonça, um curto-circuito na concepção do bolsonarista-sertanejo-ideal, não fazia shows também em cidades menores, provavelmente com cachê pago por alguma administração municipal?
Mais do que saber como os ícones sertanejos usam esse ou aquele grupo político para se posicionar politicamente, interessa-me saber como esse ou aquele grupo político usa os ícones populares de seu tempo para se posicionar diante da plateia.
Jair Bolsonaro, por exemplo, já jogou os trabalhadores do campo contra os da cidade ao dizer que os primeiros eram os verdadeiros patriotas com coragem de enfrentar as regras de distanciamento social, arregaçar as mangas e trabalhar, como homens, durante a pandemia, diferentemente de adeptos do mimimi criados em prédio.
A criação do inimigo comum é o que garante apoio, voto e base energizada pelo ódio e pelo ranço. É isso o que parte dos sertanejos hoje replica acriticamente como num exercício de reforço de identidade. Se levam algum por fora para isso, aí é caso de polícia.
Zé Neto e Gusttavo Lima tinham teto de vidro e agora precisam vir a público, constrangidos, se defender de ataques que eles proferiram contra artistas como eles. Esses ataques voltaram em suas testas como bumerangues.
Sobrou um pouco de tudo ali, menos inteligência — e isso ficou tão evidente que tirar uma casquinha fica até tentador. Viu como é bom?
Ainda assim há muito de classismo quando os ataques partem de concepções sobre bom gosto, crise estética, insalubridade musical e uma associação imediata, ampla geral e irrestrita, entre um estilo musical e o suposto atraso do país.
Anitta e os sertanejos revoltados são fenômenos populares e isso rendeu a eles muito dinheiro. Tanto dinheiro que é até possível questionar se eles podem, a essa altura, falar em nome dos peões, da fábrica ou do campo, que se espera que representem.
Em comum, além do exercício para explicar que artista também é gente — e que precisa de dinheiro para pagar suas contas — é o desprezo mútuo de dois universos que não se reconhecem nem se bicam.
Talvez nem isso seja novo, mas nunca foi tão cooptado para discurso político como agora.