Pedro Duarte Guimarães, 51 anos, assumiu a presidência da Caixa Econômica Federal logo após a posse de Jair Bolsonaro. Desde então, tornou-se um dos integrantes do governo mais próximos do presidente da República. Por meses a fio, especialmente no período da pandemia, quando o Palácio do Planalto precisava propagandear ao máximo o auxílio emergencial distribuído aos brasileiros mais carentes, foi figura frequente nas tradicionais transmissões on-line feitas por Bolsonaro nas noites de quinta-feira.
Graças à visibilidade que ganhou a partir da entrada para o governo, Pedro Guimarães planejava até sair candidato a deputado ou a senador nas próximas eleições. Acabou desistindo depois de ser apresentado a pesquisas pouco animadoras sobre suas chances de vitória.
Carioca, antes de chegar a Brasília Guimarães já havia percorrido uma longa trajetória no mercado financeiro. Ocupou cargos elevados em bancos importantes e em fundos de investimentos. Ao assumir a Caixa, o economista fez questão de ecoar o discurso que elegeu Bolsonaro. Quando o governo ainda não tinha se aliado ao Centrão, dizia que era preciso agir contra a roubalheira dos indicados do grupo que haviam ocupado altos cargos no banco durante a era petista.
Com um estilo um tanto exótico de administrar, causou polêmica tempos atrás ao aparecer em vídeos ordenando que empregados da instituição fizessem flexões durante uma cerimônia pública, a pretexto de motivá-los. Acabou processado por constranger os subordinados indevidamente. Técnicas semelhantes de “motivação” chegaram a ser usadas por ele no dia a dia no imenso edifício que abriga a sede nacional da Caixa, na região central de Brasília.
Por um período, quando decidia descer pelas escadas as duas dezenas de andares que separam o seu gabinete do térreo, saía colhendo os funcionários que encontrava pelo caminho à espera do elevador e os convocava para acompanhá-lo no “exercício”. Não restava alternativa para quem recebia o chamado: dizer não à convocação do presidente em seus expedientes quase militares poderia virar um problema.
Nos bastidores da Caixa, já há algum tempo correm relatos de que, para além dessas questionáveis sessões de coaching impostas aos empregados, Guimarães coleciona episódios de assédio sexual dentro do banco. Nada, porém, havia avançado para providências capazes de colocar em xeque sua permanência no cargo. Até agora.
No fim do ano passado, um grupo de funcionárias decidiu romper o silêncio e denunciar as situações pelas quais passaram. Há mais de um mês, a coluna vem colhendo os relatos de algumas dessas mulheres. Todas elas trabalham ou trabalharam em equipes que servem diretamente ao gabinete da presidência da Caixa. Cinco concordaram em dar entrevistas, desde que suas identidades fossem preservadas. Elas dizem que se sentiram abusadas por Pedro Guimarães em diferentes ocasiões, sempre durante compromissos de trabalho.
Os depoimentos são fortes. As mulheres relatam toques íntimos não autorizados, abordagens inadequadas e convites heterodoxos, incompatíveis com o que deveria ser o normal na relação entre o presidente do maior banco público brasileiro e funcionárias sob seu comando.
A iniciativa dessas mulheres levou à abertura de uma investigação que está em andamento, sob sigilo, no Ministério Público Federal. Algumas das funcionárias que concordaram em falar para esta reportagem já prestaram declarações oficialmente aos procuradores. Outras deverão ser convidadas a depor em breve. Este é o primeiro caso público de assédio sexual envolvendo um alto funcionário do governo Jair Bolsonaro.
Vários dos testemunhos estão relacionados a viagens realizadas por Pedro Guimarães como parte do programa Caixa Mais Brasil, criado por ele para descentralizar a gestão e dar mais visibilidade ao banco pelo país afora. Desde janeiro de 2019, foram realizadas mais de 140 visitas a cidades de todas as regiões.
Com outros executivos e um séquito de funcionários – e funcionárias – que o acompanham a partir de Brasília, Guimarães visita agências, se reúne com autoridades locais e conhece projetos sociais financiados pelo banco. As viagens ocorrem principalmente nos finais de semana.
O presidente, seus auxiliares mais próximos e os demais funcionários que integram a comitiva ficam hospedados em hotéis e participam de eventos e confraternizações durante os quais, de acordo com os depoimentos, ocorreram vários dos episódios.
Ana afirma que, a depender da proximidade que tem com algumas das mulheres, Pedro Guimarães passa a se sentir “dono” delas. “É comum ele pegar na cintura, pegar no pescoço. Já aconteceu comigo e com várias colegas”, diz. “Ele trata as mulheres que estão perto como se fossem dele.” A reportagem teve acesso a registros que corroboram o relato, mas optou por não exibi-los para não expor a funcionária envolvida. Ana relata que, diante de negativas das subordinadas, ele insiste: “Ele já tentou várias vezes avançar o sinal comigo. É uma pessoa que não sabe escutar não”. “Quando escuta, vira a cara e passa a ignorar. Quando me encontrava, nem me cumprimentava mais”, completa.
Dentro da Caixa, uma prática apontada como comum na atual gestão deu origem a um epíteto: “discos voadores”. Assim são chamadas as mulheres que, durante as viagens pelo país, despertam a atenção do presidente do banco a ponto de ele chamá-las para atuar em Brasília. Por vezes, diz uma das mulheres, funcionárias são promovidas hierarquicamente mesmo sem preencher os requisitos necessários e acabam transferidas para a sede, por conveniência de Guimarães.
A escolha das mulheres que integram a comitiva de Pedro Guimarães nas viagens do programa Caixa Mais Brasil é feita diretamente pelo gabinete dele, denunciam as funcionárias. As selecionadas são comunicadas, segundo Ana, como quem recebe a notícia de que acabou de ganhar um prêmio. E o critério da seleção, diz Valéria, outra funcionária, é definido de acordo com as preferências de Guimarães: “Tem um padrão. Mulher bonita é sempre escolhida para viajar”. “Ele convida para as viagens as mulheres que acha interessantes”, afirma.
Entre os relatos há algo que aparece em mais de uma oportunidade: convites, durante as viagens, para as funcionárias irem à piscina ou à sauna na companhia do presidente do banco nos horários de folga na agenda. “Ele me chamou para ir para sauna com ele. Perguntou: ‘Você gosta de sauna?’. Eu disse: ‘Presidente, eu não gosto’. Se eu tivesse respondido que gosto, ele daria prosseguimento à conversa. De que forma eu falo não? Então, eu tenho que falar que não gosto. É humilhante. Ele constrange”, diz Thaís. Ela afirma que, na mesma viagem, Guimarães a beliscou. Thaís diz que aquela foi uma das primeiras vezes em que foi destacada para viajar com o presidente da Caixa. “Ele praticamente nunca tinha me visto antes.” Beatriz, mais uma das funcionárias que se sentiram assediadas, relata que, depois de Guimarães puxar conversa sobre suas habilidades de nadador (na juventude, ele chegou a participar de competições), também recebeu um convite que classifica como estranho para nadar. “Eu falei que não ia”, diz. Ela afirma que recusou por ter entendido que havia segundas intenções no chamado.
Cristina diz que, em outra viagem, duas funcionárias da equipe foram chamadas para ir à piscina do hotel encontrar Pedro Guimarães. Ao chegar lá, entenderam qual era a ideia. Primeiro, elas se sentiram constrangidas a assistir à performance dele na piscina. “Ele parecia um boto, se exibindo. Era uma espécie de dança do acasalamento”, diz ela. Depois, afirma, uma das mulheres ouviu uma proposta indecente, feita por uma pessoa bem próxima a Guimarães: “E se o presidente quiser transar com você?”.
Outro ponto presente nos relatos são os chamados – tarde da noite, inclusive – para funcionárias irem ao quarto de Pedro Guimarães. Duas delas dizem já ter recebido pedidos para que levassem a ele itens dos quais estava precisando com suposta urgência: remédio, carregador de celular, bolsa que havia ficado no carro. “Ele pede carregador de celular, sal de fruta, remédios”, diz Beatriz. Ao chegar ao quarto, dizem as funcionárias, vem o constrangimento.
Beatriz relata que, em uma dessas situações, esteve na porta do quarto de Guimarães para entregar o que ele pedira e, então, foi convidada a voltar na sequência para “discutir a carreira”. “Ele falou assim: ‘Vai lá, toma um banho e vem aqui depois para a gente conversar sobre sua carreira’. Não entendi. Na porta do quarto dele. Ele do lado de dentro (do quarto) e eu um metro para fora. Falei assim: ‘Depois a gente conversa, presidente’. Achei aquilo um absurdo. Não ia entrar no quarto dele. Fui para meu quarto e entrei em pânico”. Em outra ocasião, ao atender o chamado, a funcionária encontrou Guimarães de samba-canção: “Ele abriu a porta com um short, parecia que estava sem cueca. Não estava decente. A sensação que tinha era que estava sem (cueca). Muito ruim a sensação”. “É hostil”, diz Ana, a outra funcionária que relata já ter sido chamada à noite para ir ao quarto de hotel em que Guimarães estava para entregar um carregador de celular. Beatriz afirma que tem crises de pânico quando é escalada para novas viagens. “Tenho pânico de ter que trabalhar com ele. Tenho medo da pessoa. Agora eu tento literalmente me esconder nas agendas”, afirma. “Agora, quando viajo, coloco cadeira na porta do quarto. Fico com medo de alguém bater.”
Todos os relatos têm como pano de fundo a relação de poder e a posição de mando de Guimarães. “A posição em que ele se coloca deixa as mulheres muito constrangidas. Se ele tem o poder, você tem que fazer, tem que fazer o que ele mandar, independentemente do que seja”, afirma Thaís, a funcionária que diz ter sido convidada por ele para ir à sauna e, na mesma viagem, recebeu um beliscão. “Ele chega de forma muita invasiva e constrangedora”, prossegue.
A lógica das abordagens, dizem as mulheres, é sempre a mesma. Elas afirmam que Guimarães trabalha com a ideia de que quem aceita as investidas pode ganhar vantagens, como ascensão na carreira. “Sempre tem perguntas do tipo: ‘Quero saber se você está comigo ou não, se eu posso contar com você’”, diz Cristina. “É um conceito deturpado de meritocracia. Para ele, meritocracia é atendê-lo”, afirma Valéria.
Thaís conta que, durante um evento em uma viagem ao Nordeste, Guimarães se aproximou. Queria que ela guardasse um cartão e o telefone celular dele. “Ele veio com o cartão de acesso do quarto e o celular, querendo que eu guardasse. Eu falei: ‘Presidente, minha mão está ocupada”. Thaís estava segurando um presente que Guimarães havia acabado de ganhar. Foi então que ele reagiu de uma maneira que a surpreendeu – e a fez, depois, considerar que aquele era um caso de assédio. “Ele veio e enfiou o celular e o cartão no meu bolso e falou: ‘Eu vou botar aí na frente’. Na hora, não tive reação. Pensei: ‘Botar na frente? Fiquei meio assim…”, afirma. “Foi nessa mesma viagem que, mais tarde, ele me chamou para ir para a sauna”, diz ela.
Beatriz afirma que, para além dos convites para nadar e dos chamados para ir ao quarto de Guimarães, foi surpreendida durante outra viagem, desta vez para uma capital da região Sudeste. Ela afirma que, depois de concluídos os trabalhos, ele estava deixando o salão onde havia jantado quando a chamou para repassar a agenda do dia seguinte e, de repente, enquanto caminhavam, avançou o sinal. “Ele passou a mão em mim. Foi um absurdo. Ele apertou minha bunda. Literalmente isso”, afirma. Ao fazer o relato, Beatriz chora. “Nunca precisei disso na minha vida para ganhar cargo. Prefiro até não ter cargo, mas nunca precisei disso.” Beatriz conta que, na hora, saiu de perto do chefe a passos largos. E que, assustada, procurou um colega que estava nas proximidades. “Falei com esse colega: ‘Fica aqui falando comigo’. Ele respondeu que não estava entendendo nada. Eu disse: ‘Não me solta, só fica conversando, como se nada tivesse acontecido. Finge que estou tratando alguma coisa com você. Nem olhei para trás”, relata. Era para dar tempo de Guimarães sair do ambiente, diz ela. O colega, afirma, continuou sem entender nada. “Nem contei a ele o que tinha acontecido. Depois, subi para o meu quarto e desabei. Chorei, desesperada, em pânico. Ela diz que nunca falou sobre o episódio antes por achar que o relato jamais resultaria em punição para o presidente do banco. “Hoje ainda trabalho nas agendas de vez em quando. Mas tento não ficar perto. Quando tenho que viajar, tenho crise de ansiedade”, afirma.
Cristina afirma que, em uma viagem para uma importante cidade nordestina, Pedro Guimarães convidou um grupo restrito de integrantes da comitiva que o acompanhava para um jantar. Foram todos para um restaurante. Já era noite. À mesa, diz ela, ele foi se empolgando. A viagem fazia parte da programação do Caixa Mais Brasil. A certa altura, afirma Cristina, Guimarães disse que uma das excursões seguintes do programa deveria ser para Porto Seguro, na Bahia. E que, para essa viagem, tinha uma ideia especial: organizar uma espécie de micareta privê, na qual ninguém seria de ninguém. “Ele disse: ‘A gente vai fazer um carnaval fora de época (…) Ninguém vai ser de ninguém. E vai ser com todo mundo nu’”, relata Cristina. Ela diz que, a pedido de Guimarães, um assessor próximo anotou na agenda um lembrete para incluir a cidade baiana na lista dos roteiros futuros. Cristina afirma que ele se virou para ela e prometeu rasgá-la, até sangrar. “Ele me falou: ‘Vou te rasgar. Vai sangrar’”. Na mesma ocasião, diz ela, Guimarães pôs pelo menos dois amigos que também trabalham na Caixa para falar por telefone com as funcionárias que estavam à mesa e começou a “arranjar casais”: “Ele dizia, apontando para nós: ‘nessa viagem fulano vai pegar você, beltrano vai pegar você’. Foi nojento”. A reportagem ouviu dois outros funcionários que estavam no mesmo jantar. Sob reserva, eles confirmam o relato. Os três – Cristina e os dois colegas – já foram ouvidos na investigação em andamento no Ministério Público.
Já era tarde da noite e a programação oficial do Caixa Mais Brasil na cidade do litoral do Nordeste havia sido concluída com êxito. Cristina afirma que, após o jantar, Pedro Guimarães levou uma parte do grupo que o acompanhava até a areia da praia. Logo depois, diz, ele propôs que todos entrassem no mar para tirar uma foto. “Na hora, ele derrubou a gente na água. Ficamos no mar por um tempo, e ele ficava circulando entre os grupos. De vez em quando ele aparecia do meu lado. Teve uma hora em que ele chegou e perguntou: ‘Você confia em mim? Confia na minha gestão? Você está comigo agora. Vem cá, me abraça”, afirma ela. Cristina conta que, constrangida, não sabia o que fazer. “Aí ele disse: me abraça direito, porra. E deu umas catracadas, e passou a mão em mim. Na hora de tirar a mão, passou a mão no meu peito”, diz a funcionária. Valéria, que também estava no grupo, faz um relato semelhante. “Eu estava com a roupa molhada. Ele chegou perto, disse que gostava muito de mim, perguntou se eu estava feliz e passou a mão na minha bunda”, conta. “Foi uma mãozona. Ali, ficou muito claro (o assédio). Foi como se ele dissesse: ‘Se você der para mim, você vai ser promovida’”, emenda. Valéria diz que entendeu a abordagem como uma proposta “para entrar para o clã da orgia” de Guimarães. Esse episódio consta dos relatos levados ao conhecimento de procuradores do Ministério Público Federal.
As mulheres são unânimes ao responder que não denunciaram antes as situações sobre as quais estão falando agora por medo de serem perseguidas. Elas dizem não confiar nos canais de denúncias internas do banco – na Caixa, há um setor, a Corregedoria, que tem entre suas atribuições a apuração de casos do tipo. Uma das funcionárias afirma ter conhecimento do caso de uma colega de trabalho que resolveu comunicar uma situação de assédio que experimentou dentro da instituição, mas logo depois sua “denúncia” chegou às mãos de funcionários do gabinete de Guimarães. “A gente tinha muito receio, porque a corda arrebenta sempre do lado mais fraco, porque em qualquer lugar em que vá essa denúncia ele pode ter um infiltrado. E isso afeta o resto do meu encarreiramento, no aspecto profissional. Então, era melhor esperar passar”, afirma Thaís. “Noventa por cento das mulheres não vão falar porque ele tem poder”, emenda. “Quando ele percebe que tem algum caso que representa risco, chama para perto, mantém a mulher por perto. Ou então pede às pessoas próximas para que elas sejam observadas”, afirma Ana.
A coluna fez uma série de perguntas a Pedro Guimarães, mas não houve respostas pontuais. A Caixa Econômica Federal enviou a seguinte nota:
“A Caixa não tem conhecimento das denúncias apresentadas pelo veículo. A Caixa esclarece que adota medidas de eliminação de condutas relacionadas a qualquer tipo de assédio. O banco possui um sólido sistema de integridade, ancorado na observância dos diversos protocolos de prevenção, ao Código de Ética e ao de Conduta, que vedam a prática de ‘qualquer tipo de assédio, mediante conduta verbal ou física de humilhação, coação ou ameaça’. A Caixa possui, ainda, canal de denúncias, por meio do qual são apuradas quaisquer supostas irregularidades atribuídas à conduta de qualquer empregado, independente da função hierárquica, que garante o anonimato, o sigilo e o correto processamento das denúncias. Ademais, todo empregado do banco participa da ação educacional sobre Ética e Conduta na Caixa, da reunião anual sobre Código de Ética na sua Unidade, bem como deve assinar o Termo de Ciência de Ética, por meio dos canais internos. A Caixa possui, ainda, a cartilha ‘Promovendo um Ambiente de Trabalho Saudável’, que visa contribuir para a prevenção do assédio de forma ampla, com conteúdo informativo sobre esse tipo de prática, auxiliando na conscientização, reflexão, prevenção e promoção de um ambiente de trabalho saudável.”