Uma placa pintada à mão imitando uma sinalização rodoviária anuncia: “Aqui termina a Transamazônica.” Depois dela, um escadão de cimento leva às palafitas que margeiam o rio Purus, na cidade de Lábrea (AM). Na outra beira, a floresta reina quase intocada.
Josivaldo Silva, 40, vai descendo os degraus, carregando uma melancia no ombro. O indígena da etnia paumari ocupa uma habitação semidestruída no bairro todo feito de madeira, incluindo as casas, as ruas e os postes que as elevam. Embaixo, o leito do rio acumula lodo e lixo. “Vim da aldeia para resolver uma documentação aqui. E índio não tem onde ficar, tem que se arrumar em qualquer canto.”
Em uma parede próxima, como em outras por ali, está pichado “CV”. O Comando Vermelho é a principal facção que controla as rotas da cocaína, vinda da vizinha Bolívia, e da maconha, plantada no meio da selva brasileira. Outro grupo criminoso, o FDN (Família do Norte), disputa o território, com mortes nas ruas e inscrições nos muros de Lábrea.
Em uma residência abandonada, mais de trinta urubus ficam empoleirados. Em outra, bem cuidada, mora a família de Cleyton Cordovil, 32. Meio apurinã, meio cairu (como os nativos chamam os brancos), ele aproveita o leito fértil do rio para plantar. Fez até horta nos trapiches mais antigos, as passarelas mais baixas que não dão conta das cheias atuais do rio. Tem coentro, salsinha, cebolinha e muito, muito maracujá.
“A gente cuida para que urubu não chegue perto, porque é parte do nosso sustento. O resto a gente planta na roça da aldeia e traz pra cá pelo rio pra vender”, conta Cordovil.
Esse é o cenário onde acaba a rodovia que a ditadura militar (1964-1985) projetou para integrar a Amazônia ao país. Mas há quem queira esconder essa realidade.
A praia que vem e vai
Tapumes de lonas e paus cobriam dos visitantes a vista para o esgoto a céu aberto embaixo das palafitas. Aquele era o único caminho para a Festa do Sol, e o ser humano é um animal que promove festas justamente para escapar de sua realidade.
O principal evento da região voltou após dois anos cancelado pela pandemia, atraindo até foliões de Rondônia e do Acre. No palco montado na praia fluvial, as atrações eram o DJ Jesus Luz (famoso por ser ex-namorado de Madonna), o cantor Tierry (autor do megahit momentâneo “Rita”), além de Loirão e Forró Brizado.
Com os poucos hotéis da cidade lotados, os artistas ficaram hospedados em dois iates de um empresário local ancorados no rio. Atrás do palco, uma plantação de mandioca aproveitava a fertilidade do solo deixada pela vazante durante o “verão amazônico”.
Ninguém ali lembrou que no ano de 2022 completam-se 50 anos da inauguração da BR-230, única ligação por terra da cidade. Até desdenharam quando informados da data. “Mesmo com a estrada, Lábrea era esquecida completamente. Foi a Festa do Sol que colocou a gente no mapa”, opinou o vendedor de açaí Raimundo Ventura, 54. Toda edição, e já foram 30, ele aparece com um visual novo. Dessa vez, em sua função de “estrela do público”, gastou R$ 60 em tintura e colocou a sobrinha para colorir seu cabelo e barba de vermelho e amarelo.
Ele chamava a atenção no meio de rapazes bebendo cerveja suja (misturada com limão, gelo e sal) e garotas caprichando nas selfies. Uma delas era a garçonete Ituani Galvão, 28, que fez seu biquíni de crochê, seu hobby. “Hoje é o dia mais importante para a cidade. Vai voar cachaça pra todo lado”, brincou. Como muitos, ela dançava na sombra que a estrutura do palco fazia para escapar do sol abrasador.
Uma tempestade caiu no final do festival, deixando carros atolados e pessoas enlameadas, dando ares de um Woodstock equatorial. Com as chuvas posteriores e a cheia do rio, a partir de outubro a própria praia desapareceu para só voltar à tona em junho próximo.
A transamargura
Após centenas de quilômetros de pista de terra e pontes de madeira, parece até uma miragem quando, nas proximidades de Lábrea, surge o asfalto novo, um tapete preto com faixas pintadas e tachas refletivas.
Quem utiliza a rodovia por ali chama esse trecho acidentado por outro nome: “Transamargura”. A piada é que a estrada não tem buracos: são verdadeiras cisternas, de tão largas que são as cavidades. Na época do aguaceiro, vários trechos ficaram intransitáveis.
Seguindo o plano original, essa seria a maior estrada do Brasil, partindo do porto paraibano de Cabedelo, atravessando o território de leste para oeste e chegando a Benjamin Constant, na região da tríplice fronteira com Peru e Colômbia. Em tom ufanista, os militares tinham como lema “integrar para não entregar”.
Contudo, dificuldades geográficas e crises financeiras fizeram que a via acabasse neste município à beira do tortuoso rio Purus. O asfaltamento nunca foi completado, e muitos colonos foram abandonados à própria sorte depois de ganharem terras por ali durante o PIN (Programa de Integração Nacional), promovido pela ditadura.
Atualmente, dos mais de 4.200 quilômetros, 1.753 são de terra, principalmente em seu trecho final no Pará e Amazonas. A terceira rodovia mais extensa do país (só atrás da BR-116 e da BR-101) se transformou na principal via de colonização da região Norte, com levas de migrantes, vindos principalmente da região Sul.
Mas a estrada também trouxe a devastação de seus recursos naturais, com o desmatamento e a mineração ilegal. Surgiram até caminhos tão clandestinos quanto a extração que escoavam, como a Transmadeireira e a Transgarimpeira, ramais das estradas principais da floresta.
O aumento das queimadas emprestam à selva um ar industrial, com fumaça cobrindo o azul do céu e deixando o sol vermelho até quando está a pino. À beira da rodovia, o “inferno verde”, como era chamada a floresta amazônica durante o governo militar, virou uma paisagem incinerada.
A natureza vista como inimiga criou ao longo de cinco décadas um mercado de terras invadidas, seja de reservas públicas ou de territórios indígenas. À margem da BR-230, grileiros, posseiros, fazendeiros, pistoleiros, sem-terras, colonos e povos originários disputam entre si o que restou do que era para ser um eixo de progresso.
Uma borracha na história
“Foi em 1968. Mais de mil queixadas atravessaram o rio Madeira e invadiram a cidade. Destruíram tudo que tinham pela frente e escapuliram pela floresta. Saíram da água bem onde agora é o porto da balsa. Pra mim, aquilo foi um prenúncio.” O radialista José Alves da Costa, 79, mais conhecido como Juca Peão, lembra bem do episódio em Humaitá, a penúltima cidade da Transamazônica.
Poucos anos depois, a rodovia chegou à cidade. Juca trabalhou no trecho de 215 quilômetros da rodovia até Lábrea. “Tinha muita onça, mas elas não se aproximavam do canteiro de obras. Tinham medo de tanto trabalhador junto”, lembra.
Palafitas do rio Purus
Assim como ele, o empresário Raimundo Santiago, 72, apelidado de Bem-Te-Vi, também ouviu muito na infância as histórias de quando em Humaitá só se vestia com grifes francesas. Era o Ciclo da Borracha (1880-1945), que atraiu levas de portugueses e nordestinos pelos rios da região, fundando cidades como Humaitá e Lábrea.
Pelo menos, Bem-Te-Vi se deu ao luxo de comprar uma joia da época para ter de recordação: um palacete de 1908, que já foi residência do governador do Estado, sede da diocese e filial de banco. Ele gastou R$ 2 milhões e quatro anos para reformar a construção. Bem-Te-Vi fez fortuna vendendo madeira para empresas japonesas na década de 1980, depois investiu o lucro em postos de gasolina.
“Muita gente foi embora daqui antes e depois da Transamazônica. Há muita falta de perspectiva e emprego por aqui”, afirma Bem-Te-Vi, outro que trabalhou na construção da rodovia.
Sem fio, com pavio
À beira da Transamazônica, os postes suportam sempre placas de “vendo hectares” ou “vendo fazenda”, mesmo em áreas protegidas de florestal nacional. O horizonte se esconde atrás da camada leitosa, formada pela névoa dos incêndios criminosos que convertem a mata derrubada em pasto para revender no mercado paralelo de terras.
Se chove, a lama acrescenta mais emoção ao ziguezague que os carros são obrigados a fazer para escapar dos buracos da rodovia. Os pneus patinam, e o perigo de atolar é contínuo. Se faz sol, a poeira logo sobe. Cruzar ou ficar atrás de um caminhão é certeza de visibilidade nenhuma no meio da nuvem vermelha.
Durante os longos percursos cortando a selva, antas, pacas, mutuns e até aranhas caranguejeiras atravessam a pista. Só se vê casas quando um igarapé cruza o trajeto. E, perto das balsas ou das pontes de madeira, tem sempre um comércio que aluga por R$ 5 uma senha de wi-fi.
Chegando a Lábrea, o forasteiro logo percebe que é difícil achar uma sombra para se abrigar do calor. A cidade é muito pouco arborizada. Como se sentissem sitiados, seus moradores parecem querer distância da natureza.