A vergonha dos “213 milhões de tiranos soberanos” desprezados no STF

A vergonha dos “213 milhões de tiranos soberanos” desprezados no STF

Mais da metade dos brasileiros estão com vergonha de Lula, dos deputados, dos senadores e dos ministros do STF, de acordo com a pesquisa do Datafolha divulgada na sexta-feira. A maioria dos brasileiros só não têm vergonha das Força Armadas, veja só.

No caso dos iluministas do Supremo, a porcentagem chega a 58%. Ou seja, 6 em cada 10 brasileiros têm vergonha deles.

A vergonha é maior entre os bolsonaristas e afins, como não poderia deixar de ser, na proporção de 8 em cada 10, mas ela não é tão pequena entre os petistas e simpatizantes: quase 4 em cada 10.

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A proporção não é tão pequena, explico, se levarmos em conta que, afinal de contas, foram basicamente os atuais ministros do STF que anularam a condenação de Lula — e que vão colocar Jair Bolsonaro na cadeia, o que explica boa parte da vergonha, que se mistura com raiva, imagino, dos bolsonaristas em relação ao tribunal.

De qualquer forma, não importa a coloração político-ideológica, os brasileiros não estão contentes com o seu tribunal excelso, magnífico, egrégio.

Há mais de ano, comentei uma pesquisa da AtlasIntel que mostrava que a metade dos cidadãos, praticamente, acreditava que o Brasil vivia sob uma ditadura do Judiciário.

Escrevi que o STF não nasceu para ganhar campeonato de popularidade, mas que também não havia sido criado para ganhar campeonato de impopularidade, como estava ganhando.

Ousei recomendar, mesmo sendo reles jornalista, que “os ministros do STF não se admirassem no espelho que os jornais lhes mostram, o de salvadores da democracia”, porque se tratava de reflexo enganoso.

De lá para cá, os ministros não só continuaram a admirar-se em tal espelho, como passaram a demonstrar certo desprezo pela sociedade que lhes paga para atuar em defesa da Constituição. Ou não há desprezo quando se pretende “recivilizar totalmente” essa sociedade?

No julgamento que restabeleceu oficialmente a censura no país, por meio da “regulamentação” das plataformas digitais, a ministra Cármen Lúcia, outrora defensora intransigente da liberdade de expressão, saiu-se com um veredicto terrível sobre os seus compatriotas, todos eles.

“A grande dificuldade está aí: censura é proibida constitucionalmente, eticamente, moralmente, e eu diria até espiritualmente. Mas também não se pode permitir que estejamos numa ágora em que haja 213 milhões de pequenos tiranos soberanos. E soberano aqui é o direito brasileiro. É preciso cumprir as regras para que a gente consiga uma convivência que, se não for em paz, tenha pelo menos um pingo de sossego. É isso que estamos buscando aqui: esse equilíbrio dificílimo”, disse a ministra.

Não vou me alongar a respeito do “pingo de sossego” a que Cármen Lúcia fez menção. Vou apenas dizer que, em verdadeiras democracias, não há desses pingos, não, uma vez que o confronto entre os diferentes lados é torrente contínua e barulhenta.

Sobre a “ágora dos 213 milhões de tiranos soberanos”, imagino que a ministra saiba que, na democracia ateniense, à qual ela fez referência ao falar em “ágora”, havia dois tipos de discurso livre.

O primeiro deles era o discurso a ser esgrimido nas assembleias políticas, a isegoria. A fim de garantir a qualidade do debate entre os cidadãos que compunham a elite de Atenas, a isegoria tinha limites bem precisos que não poderiam ser violados, sob pena de punição. Difamação e impiedade, por exemplo, eram proibidos.

O segundo tipo de discurso, a parrésia, era o que ocorria fora das assembleias, na ágora, e garantia a todos os atenienses (homens), não importava a sua condição social, a completa liberdade de expressão.

Ao criticar a inimiga Esparta, Demóstenes, o grande orador ateniense, disse que, em Atenas, era permitido aos indivíduos criticar o seu próprio sistema democrático e elogiar o de Esparta, ao passo que, entre os espartanos, só era possível elogiar a ditadura a que estavam submetidos.

Isso faz toda a diferença, como nota o autor dinamarquês Jacob Mchangama, que volto a citar aqui, uma vez que “a capacidade de criticar livremente o próprio sistema político ainda é um teste decisivo das democracias, tanto do passado quanto do presente”.

Dê-se, portanto, o nome de cidadãos aos “213 milhões de pequenos tiranos” de Cármen Lúcia. Já o  “pingo de sossego” da ministra pode ser chamado de paz dos cemitérios.

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