Opinião: Público de “Vale Tudo” não aguenta mais ver Raquel sofrer

Opinião: Público de “Vale Tudo” não aguenta mais ver Raquel sofrer

O público de “Vale Tudo” ficou revoltado com o arco de Raquel (Taís Araújo) no remake de “Vale Tudo” – que voltará a vender sanduíche na praia após ficar pobre de novo. A decisão da autora Manuela Dias aponta para algo maior do que uma simples discordância sobre roteiro: é uma crítica contundente à forma como a dramaturgia ainda insiste em repetir estereótipos cansados e ultrapassados — principalmente quando se trata de personagens negros. Quem acompanha a novela das nove da Globo quer ver Raquel brilhar. Não porque ela sofreu, mas porque ela merece. Como tantas mulheres negras deste país.

Se a dramaturgia é ferramenta de transformação e representação, a novelista precisa entender que o que está sendo feito com a personagem Raquel é cruel, injusto e profundamente decepcionante.

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Desde o início, a construção da protagonista — interpretada de forma brilhante por Taís Araujo — tem sido marcada por escolhas que reforçam estereótipos cansados e perigosos. O figurino sem cuidado, a caracterização apagada, o abandono da vaidade… tudo isso constrói uma imagem ultrapassada da mulher negra batalhadora que só é reconhecida se estiver sofrendo. Isso não condiz com a mulher negra de 2025. Isso não representa a Raquel que o telespectador aprendeu a admirar.

Mas o que mais revolta o público — e que gerou tamanha comoção recentemente — é essa escolha de fazer Raquel, mais uma vez, voltar à pobreza. Por quê? Qual a necessidade de colocá-la novamente vendendo sanduíche na praia? Por que derrubar tudo o que ela construiu?

Raquel já havia vencido. Já tinha história, complexidade, conflitos. Depois que ficou rica, enfrentou dilemas éticos, dramas familiares, embates importantes. Ela não precisava perder tudo para continuar sendo interessante. Pelo contrário: sua permanência no topo mostraria uma nova possibilidade, uma nova representação. Mostrar uma mulher negra poderosa, rica, ética e plena ainda é, infelizmente, algo revolucionário na televisão brasileira.

Ao colocá-la de volta no ponto de partida, a mensagem que se passa é perigosa: que a pessoa negra só tem valor se sofre. Que precisa ser humilhada antes de ser aceita. Que seu lugar é sempre o da luta, nunca da estabilidade. Isso reforça o imaginário meritocrático de que o preto só vence se passar por provações extremas — e, ainda assim, pode perder tudo a qualquer momento.

Não precisava disso. A própria Taís já disse: Raquel sempre foi uma mulher negra, mesmo na novela original. Isso já bastava. Transformar isso em sofrimento gratuito, em retrocesso narrativo, não só desrespeita a trajetória da personagem como também machuca quem se vê nela.

A televisão ainda tem um papel enorme na forma como o Brasil enxerga sua própria população. Uma novela em horário nobre tem o poder de mudar olhares, de abrir caminhos, de gerar identificação e orgulho. Mas também pode reforçar violências simbólicas que muitas pessoas negras lutam todos os dias para superar.

É hora de a autora escutar o público e refletir sobre o que está sendo contado. Reescrever uma história clássica é uma grande responsabilidade. E quando essa história envolve a representação de uma mulher negra protagonista, essa responsabilidade se torna ainda maior.

 

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