O som da rebeldia: por que o trap e o funk são o novo rock’n’roll

O som da rebeldia: por que o trap e o funk são o novo rock’n’roll

A música sempre foi a fagulha das revoluções culturais. Nos anos 70, o punk emergiu das entranhas do tédio e do conformismo para cuspir na cara do sistema. Era o barulho da revolta, o soco no estômago de uma sociedade que empacotava seus filhos para o mercado como engrenagens obedientes.

O rock’n’roll, antes disso, já tinha pavimentado esse caminho: transgressão, sensualidade, drogas, devaneios libertários. Mas o tempo faz do rebelde um monumento e da polêmica um cartaz na parede. O que era subversivo se tornou um conceito, domesticado, replicável. O rock virou um rótulo, uma pose. Hoje, no Brasil, sem revelações impactantes desde o movimento emo (últimos que representaram fortemente a atitude intrínseca ao gênero no país), sua essência se deslocou. Está na batida sincopada do trap e no grave pulsante do funk.

Revolução contemporânea

A música da periferia é uma verdadeira revolução contemporânea. O que o punk fez com Londres e Nova York nos anos 70, o trap e o funk fazem com o Brasil de hoje. Eles desafiam a moralidade seletiva e expõem feridas que tentam esconder sob o tapete da hipocrisia. O incômodo que esses gêneros causam é a prova de sua força. A burguesia torcia o nariz para o punk sujo e gritado dos Sex Pistols; agora, sua repulsa é contra os versos do trap, contra a batida dançante do funk. Mas a mensagem segue sendo a mesma: resistência, identidade e ocupação de espaço.

Veja as fotosAbrir em tela cheia Mano Brown e OruamFoto: Reprodução/Instagram @manobrown @jefdelgado MC PozeReprodução: Instagram @pozevidalouca Foto/Instagram CazuzaReprodução Reprodução/TV Globo Ravel Andrade vive Raul Seixas / Divulgação Globo

Voltar
Próximo

Leia Também

Música
“Dinheiro e Poder”: MCs se unem em colaboração que exalta o funk paulista

Carnaval
“Parece que estou em um filme”, celebra MC Daniel sobre noite do funk no Camarote N1

Cultura
“A Rainha do Funk”: história de Tati Quebra Barraco será adaptada para o cinema

Famosos
“É arte”: Lexa volta às origens e prepara novo lançamento no funk

Os defensores do “verdadeiro rock” esquecem que suas referências foram, em grande parte, garotos brancos de classe média que tocavam guitarra e destruíam quartos de hotel. O choque que causavam era permitido, até mesmo incentivado. Sexo, drogas e rock’n’roll eram um grito de independência que enchia cofres de gravadoras. Mas quando a revolta vem de corpos negros e periféricos, ela não é arte, é ameaça.

Distinção de tratamento

E se o funk e o trap são alvos de ataques constantes por suas letras, onde estava essa indignação nos anos 90, quando uma das bandas mais celebradas do rock nacional, os Raimundos, lançou uma música que descreve uma situação explícita de abuso sexual como se fosse um feito glorioso? Em “Tora Tora”, os versos são diretos:

“Se ela tá gemendo é porque eu sou um cara legal

Se ela tá tremendo é que ela gostou do meu p*u

Se ela tá gritando é que ela ‘tá querendo mais

Se ela tá berrando é hora de meter por trás.”

Nada disso foi suficiente para que a banda fosse cancelada ou tivesse sua música retirada do ar. Pelo contrário, Raimundos segue sendo uma referência do rock nacional, símbolo de uma irreverência que, quando vem da classe média, é aplaudida. Mas quando a rebeldia surge da periferia, é vista como perigosa. O punk sempre incomodou, mas foi absorvido. O funk e o trap também incomodam, mas tentam ser silenciados.

O Coringa da cena

Oruam, um dos grandes nomes do trap atual, é um exemplo emblemático dessa seletividade. Com números expressivos e dono do hit “Garota Quero Você Só Pra Mim”, ele carrega a marca de um artista controverso. Filho de Marcinho VP, o jovem sofre constantes tentativas de deslegitimação artística. Há quem o acuse de apologia ao crime, há quem tente reduzi-lo a um estereótipo inescapável.

Mas como exigir que esse rapaz aja de uma forma específica se ninguém viveu a sua realidade? Quem pode, de fato, compreender as camadas de sua trajetória e as razões por trás de seu comportamento? Sua postura provocativa, seu olhar intimidador e seu tom desafiador são, em grande parte, uma reação ao julgamento que recebe de uma elite que se vê como guardiã da cultura, determinando quem pode ou não existir artisticamente.

É inegável que Oruam precisa amadurecer e compreender a responsabilidade que carrega ao ser um espelho para a juventude periférica. Mas reprimi-lo não é o caminho. Pelo contrário, o que ele parece buscar em sua música é exatamente um espaço de compreensão. Se, ao invés de ridicularizá-lo e marginalizá-lo, a sociedade o acolhesse, talvez ele baixasse a guarda e entendesse que suas conquistas são legítimas, mas que, como diz a famosa máxima, grandes poderes exigem grandes responsabilidades. Acolhê-lo não significa isentá-lo de erros, mas permitir que ele, assim como Hariel, L7nnon e Filipe Ret, possa crescer e exercer sua arte com mais profissionalismo.

Lá é poético, aqui é grotesco

A diferença entre a cena do trap/funk e a de movimentos como o rock dos anos 80 está também na forma como seus protagonistas são retratados. Durante a era de ouro do rock, muitos ícones do gênero foram associados ao consumo desenfreado de drogas e álcool. Mas, tudo bem, pois eram vistos como figuras geniais, incompreendidas e revolucionárias.

Os artistas do trap, por outro lado, não têm o mesmo tratamento. Oruam, por exemplo, não bebe, mas isso nunca é mencionado. L7nnon já declarou que não fuma, não bebe e não usa drogas. MC Daniel adota uma rotina regrada de alimentação e atividade física. E, mesmo assim, a cena trap/funk segue sendo vista como descontrolada e inconsequente.

O consumo de drogas entre os roqueiros sempre foi tratado como parte do misticismo do gênero. Cazuza pode xingar a mãe porque jogou sua droga fora e isso vira cena de cinema para retratar a personalidade forte do poeta rebelde. Paulo Ricardo pode dar entrevistas dizendo que o RPM acabou porque usavam muita droga e isso é visto como uma história intrigante sobre o peso do sucesso.

Quando MC Hariel e MC Kevin foram flagrados fumando um baseado em um hotel, foram levados para a delegacia e estampados em programas sensacionalistas, imediatamente associados ao crime. Enquanto isso, membros dos Titãs foram pegos transportando heroína e o episódio virou inspiração para a música “Polícia”, visto como um clássico revolucionário do rock, cantado até hoje.

Se Hariel e Kevin tivessem feito o mesmo, teriam a mesma aceitação que os rockeiros tiveram? O problema nunca foi apenas o que é dito ou feito, mas sim por quem. A música periférica, independente de sua qualidade, sempre terá que enfrentar um escrutínio maior. No fim, a verdadeira transgressão do trap e do funk não está no que eles cantam, mas no simples fato de existirem e prosperarem.

Incomoda

O funk e o rap sempre foram perseguidos. MC Hariel já disse: “Salvamos pessoas do tráfico e querem nos associar a ele”. Poze do Rodo, que veio de uma realidade brutal, trocou o crime pela música e hoje canta para milhões. Mas o sucesso de um ex-traficante branco do rock é narrativa de redenção; o sucesso de um ex-traficante preto do funk é pretexto para repressão. Dois pesos, duas medidas.

O incômodo que o funk e o trap causam é a prova de que são os verdadeiros herdeiros da subversão. O ruído que provocam é o eco das vozes que o sistema não consegue calar. Eles são o punk do nosso tempo. E como o punk, um dia também serão absorvidos, comercializados, transformados em moda. Mas enquanto isso não acontece, são o som de uma inegável revolução. O som da periferia. O som da rebeldia.

Categories: ENTRETENIMENTO
Tags: CulturaCultura periféricafunkrockTrap