Mais de seis meses depois que o governo enviou o projeto ao Congresso Nacional, finalmente a Câmara dos Deputados aprovou o texto que reforma o Imposto de Renda (IR), ampliando a isenção para quem ganha até R$ 5 mil mensais e estabelecendo novo cálculo a ser aplicado em salários e aposentadorias a partir de 1º de janeiro de 2026.
A aprovação tardia, no entanto, não apaga a vitória histórica do governo e dos brasileiros. A democracia brasileira levou 40 anos para, enfim, produzir uma proposta que torna o IR mais justo. E, como não custa lembrar, de 2016 a 2022 a faixa de isenção não teve nenhum ajuste.
Como disse o presidente Lula, o projeto “corrige uma grande injustiça” que o sistema de tributação de rendas no Brasil impõe a trabalhadoras e trabalhadores brasileiros. A isenção atinge quem já escapou da vulnerabilidade extrema, mas ainda está longe do padrão de consumo da classe média “tradicional”.
Estamos falando de cerca de 15 milhões de pessoas, 10 das quais deixarão de pagar o IR e outras cinco que pagarão menos. Para isentar os 10 milhões, aumenta-se o imposto de cerca de 140 mil brasileiros, grupo que recebe R$ 600 mil de rendimentos anuais e paga, atualmente, uma alíquota média de 2,5%. Essas pessoas terão agora uma alíquota progressiva de até 10%. Não é muito o preço a pagar, mas o suficiente para garantir justiça tributária com neutralidade fiscal.
Num país de desigualdades seculares e com elites habituadas a barrar avanços em favor dos mais pobres e das classes médias, o projeto recoloca a justiça tributária e uma melhor divisão da renda no centro do debate público. É o começo de tudo, um momento de virada em que possamos qualificar e aprofundar a discussão sobre combate a privilégios, a distribuição de renda e reforma efetiva do uso das riquezas.
Não nos esqueçamos que a baixa progressividade do nosso sistema tributário, com muitas isenções sobre rendimentos que incidem exatamente sobre o topo da pirâmide, resulta em distorções graves. Um rico que recebe R$ 8 milhões anuais tem a mesma alíquota efetiva de um trabalhador com carteira assinada que ganha R$ 6 mil por mês.
Alguns exemplos práticos oferecidos pela Receita Federal ajudam a dar a verdadeira dimensão da mudança. Uma professora cujo salário mensal seja de R$ 4.867,77 paga R$ 305,40/mês de IR e passará a pagar zero, gerando uma economia de R$ 3.970,18; um profissional autônomo que recebe R$ 5.450/mês paga hoje R$ 447,43/mês de IR e passará a pagar somente R$ 180,56/mês, gerando uma economia de mais de R$ 3.202,50/ano.
Quem ganha entre R$ 5 mil e R$ 7.350, os ganhos vão de 3,61% a mais de 70%. É uma diferença enorme para qualquer trabalhador assalariado que precisa fazer muitas contas para chegar ao fim do mês com as contas em dia. O projeto mantém a arrecadação equilibrada e promove maior justiça tributária, garantindo que a carga fiscal recaia mais sobre quem tem maior capacidade contributiva, sem onerar a maioria da população.
Votação
O placar unânime chamou a atenção e inspirou declarações triunfantes no Congresso. Mas não nos enganemos. Registre-se o longo tempo de tramitação, esfriamento e até mesmo impasse em torno do projeto na Câmara.
A pressão popular nas ruas, com dezenas de milhares de pessoas protestando contra a chamada PEC (Proposta de Emenda Constitucional) da Blindagem e o projeto de anistia, deram o impulso definitivo para aprovação da reforma do IR, consumando o longo o esforço do governo de convencimento do país para a justiça da medida. Tudo leva a crer que o texto terá tramitação rápida no Senado, fruto desse mesmo consenso trazido pela mobilização nacional.
Entretanto, vale recordar que parte das nossas elites sempre reagiu negativamente. Em outubro, quando o presidente Lula e o ministro Fernando Haddad anunciaram a ideia inicial do governo, a proposta foi responsável por parte do aumento do dólar a época. Como é praxe quando estão diante de propostas que beneficiam grupos mais abaixo na pirâmide, jornais como Estadão e Folha trataram a proposta como “eleitoreira”, “populista” e “demagógica”.
Um deles chegou a dizer em editorial que ampliar a faixa de isenção do IR para R$ 5 mil “não tem amparo na realidade”, sob a justificativa de que o governo não deveria abrir mão de qualquer centavo que chegue aos cofres públicos.
Na quinta-feira, dia seguinte à aprovação, o dólar subiu e a Bolsa caiu – mesmo o relator do projeto, deputado Arthur Lira (PP-AL) atendendo aos contribuintes de alta renda, ao retirar do cálculo do que é tributável rendimentos obtidos com aplicações financeiras, como LCIs, LCAs, CRIs, CRAs, rendimentos de Fiagros, de debêntures incentivadas e de fundos de investimentos em infraestrutura. O “mercado” não surpreende nunca.
Todos sabem que a correção é o certo a fazer. A proposta de tornar os impostos brasileiros mais progressivos estava até no programa da Arena, o partido que apoiava a ditadura militar, mas simplesmente ninguém tinha feito até agora. As mudanças não eliminam a regressividade no topo, mas certamente a reduz consideravelmente.
Como escrevi, é o começo de tudo. É uma forma simbólica e prática de espalharmos aos quatro cantos uma incômoda obviedade histórica: o Brasil é uma potência, está entre os cinco países com mais de US$ 2 trilhões de PIB, tem mais de 200 milhões de habitantes, 2 milhões de quilômetros quadrados e força suficiente para alcançar o desenvolvimento.
Mas, para isso, precisa resolver problemas internos que o impede de uma revolução social e tecnológica: a concentração de renda e riqueza, a estrutura tributária, o rentismo que se apropria da renda nacional e mantém os juros altos que inviabiliza o crédito e o investimento.
A vitória com o IR, portanto, embora histórica, é insuficiente. É preciso muito mais. Essa agenda inclui a luta em defesa do emprego, dos direitos trabalhistas e de garantias sociais. Requer também afastar certos fantasmas, pregados pela direita e pelas elites financeiras, em torno do salário mínimo e da Previdência.
De um lado, há quem proponha o congelamento do salário mínimo, que só deveria aumentar ano a ano pela inflação passada e não ter nenhum aumento real como é hoje. De outro lado, com frequência se repete a proposta de desvinculá-lo das aposentadorias.
Exige também uma reforma política institucional que recupere o papel do Estado – a exemplo do que fizeram a União Europeia, a Coreia, o Japão e mesmo os EUA nas crises de 2008 e 2009 – como planejador, indutor e incentivador, capaz de colocar o setor financeiro a serviço do desenvolvimento nacional.
Como se sabe, para reduzir a desigualdade, os governos do PT e aliados adotaram políticas de transferência de renda, como o Bolsa Família, o BPC, a LOAS, acesso público e gratuito à saúde e à educação, mas os dois instrumentos mais eficazes são a redistribuição por meio de impostos e a valorização do salário mínimo.
Nossos governos aplicaram o que nossa Constituição de 1988 estabeleceu como princípios básicos para o bem-estar do nosso povo. Para preservar seus muitos ganhos, parte de nossas elites propõe a redução do Estado do Bem-Estar social, e não uma redistribuição da renda nacional. É tanto uma injustiça social quanto um erro histórico, já que isso tem inviabilizado o desenvolvimento nacional.
Reforço essas ideias como uma forma de lembrar que a alegria dos últimos dias pela aprovação do projeto é bem-vinda e necessária, mas é também um modo de redobrar forças para mais luta e mais mobilização.