Uma investigação conduzida pelo site Intercept Brasil revelou a existência de um retiro religioso na cidade de Marataízes, no litoral sul do Espírito Santo, que utiliza réplicas de fuzis e práticas de treinamento militar intenso para moldar a formação de adolescentes e jovens. O evento, chamado “Retiro Sobreviventes”, é organizado pela Igreja da Família, liderada pelo pastor e ex-militar Leandro Saldanha, autoproclamado o “comandante”.
A reportagem, publicada nesta segunda-feira (23/09/2025), detalha como o retiro mistura fé, disciplina de quartel e forte viés político-ideológico. Imagens de divulgação do evento, que ocorre desde 2022, mostram jovens enfileirados, repetindo palavras de ordem como “Deus acima de tudo!” e manuseando réplicas de armas em momentos de louvor, oração e durante exercícios físicos extremos, como rastejo, escalada e marchas.
O pastor Saldanha, que serviu sete anos no Exército, define o evento como “uma vivência militar e uma experiência com Deus”, com o mote: “Entreguem as vossas almas, porque os vossos corpos me pertencem”.
A metodologia do acampamento levantou preocupações entre especialistas. O consultor sênior do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, ouvido pelo Intercept, apontou que o modelo militarizado para crianças e adolescentes pode indicar desrespeito a direitos garantidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como a proibição de acesso a armas e o direito à integridade física e psicológica.
Langeani critica a exibição de jovens “caídos ao chão, à beira da exaustão física”, o que levanta sérias dúvidas sobre a adequação da metodologia para a faixa etária. Embora a Igreja da Família garanta que as armas não são reais, a semelhança das réplicas de airsoft ou impressões 3D com armamentos de fogo é quase total, o que, segundo o especialista, naturaliza as armas para os participantes.
Além do treinamento físico e espiritual, o retiro faz uso de forte simbologia militar. Em edições passadas, foi vista uma bandeira do “Pelotão de Operações Especiais de Vila Velha – ES”, uma unidade do Exército. O símbolo do próprio retiro é uma caveira cravada por uma cruz, uma referência clara ao símbolo de caveira usado em cursos rigorosos do Comando de Operações Especiais do Exército, como o do BOPE. Procurado, o Comando Militar do Leste (CML) informou que não tem relação com o evento e que o pastor Saldanha não possui mais vínculo com o Exército.
O viés ideológico do projeto também é evidente nas publicações do pastor Saldanha, que utiliza suas redes sociais para disseminar uma visão de extrema-direita. “Quando eu digo que a esquerda é o portão do inferno na terra, tem gente que fica com raiva de mim!”, escreveu ele em uma postagem de 2022.
O movimento também possui ligação com o clube de airsoft “Mossad,” uma referência ao serviço de espionagem israelense, cujos integrantes ostentam itens militares e a bandeira de Israel.
Em resposta ao Intercept Brasil, a Igreja da Família limitou-se a dizer que a visão da congregação é “ganhar a cidade de Marataízes para Jesus” e que, por ser proibido o uso de armas de fogo, não faz sentido usarem armas reais. O pastor Saldanha, por sua vez, convidou a equipe de reportagem a participar do próximo evento. A igreja, no entanto, não respondeu a questionamentos específicos sobre saúde e segurança dos participantes ou o uso de símbolos militares.
LEIA MAIS: Retiro religioso transforma adolescentes em ‘soldados de Cristo’