Não teremos sempre a BBC (por Pedro Adão e Silva)

Não teremos sempre a BBC (por Pedro Adão e Silva)

A história conta-se rapidamente. No domingo, o diretor-geral e a diretora de informação da BBC demitiram-se na sequência de críticas a um documentário emitido nas vésperas das presidenciais norte-americanas, que editava abusivamente o discurso de Donald Trump no dia da invasão do Capitólio, justapondo duas passagens que correspondem a momentos diferentes da intervenção. Na versão emitida, era feito um apelo direto à insurreição, com Trump a afirmar “vamos até ao Capitólio” e “eu estarei convosco e vamos lutar”.

Há duas coisas que podem ser ditas sem subterfúgios. Por um lado, o que a produtora independente que realizou o documentário para a BBC fez é péssimo jornalismo; por outro, Trump nunca reconheceu os resultados eleitorais e de facto estimulou os tumultos – o que aliás ficou demonstrado com o indulto presidencial a 1500 invasores do Capitólio.

Dito isto, podemos interpretar a onda de demissões na BBC como consequência inevitável de um erro editorial grave. Mas só mesmo uma visão muito ingénua permite essa leitura: o que tem sucedido nos últimos dias corresponde a um padrão e faz parte de uma ofensiva transnacional à imprensa livre, que tem propositadamente como alvo uma referência do serviço público de media.

A ideia de que a BBC tem um enviesamento ideológico estrutural resulta de vários episódios recentes. Contudo, é difícil descortinar em que sentido. Repare-se: agora a estação é apresentada como anti-Trump por causa de um clip de 12 segundos, emitido há um ano e que na altura não gerou comoção. Só no último ano, foi acusada de exonerar colaboradores por críticas a Israel (o que sucedeu com um dos rostos mais carismáticos da estação, Gary Lineker), de não censurar críticos de Israel (transmitindo em direto o concerto dos Bob Vylan em Glastonbury) e de emitir uma reportagem favorável ao Hamas. Como dizia ontem o jornalista decano da BBC, o já reformado Jonathan Dimbleby, “se temos uma combinação de Putin, Trump e Netanyahu a denunciar a BBC, deve haver alguma coisa que está a ser bem feita”.

O que nos deve levar a considerar outras hipóteses para explicar a golpada dos últimos dias, que levou à decapitação das chefias da BBC. No fundo, estamos a testemunhar uma sequência previsível e que tem sido seguida com disciplina pela direita radical. Começase por destruir a credibilidade das instituições de intermediação (os tribunais, as universidades e os órgãos de comunicação social). Promove-se a sua substituição por personalidades, líderes carismáticos ou influencers com alcance nas redes sociais, e por novas plataformas de conteúdos que não obedecem a critérios jornalísticos (um dos artífices da GB News, a versão britânica dos sites de direita radical que se multiplicam, está na génese desta campanha contra a BBC). Para tudo culminar na monetarização da alegada indignação (Trump reclama uma indemnização de mil milhões de dólares à BBC, à imagem do que fez com vários media norte-americanos).

O programa de reportagens da BBC cometeu um erro, a campanha transnacional em curso, atacando um dos baluartes da imprensa livre, é outra coisa: perigosa e sintomática dos tempos que vivemos. Não se trata de uma simples crítica a um órgão de comunicação, mas de uma estratégia global, concertada para substituir a busca da verdade pela propaganda. Se esta ofensiva à liberdade de imprensa e ao serviço público de mídia pode resultar até com a BBC, imaginem só o que se pode passar um pouco por todo o mundo. Aliás, já se está a passar.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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