O barulho da bala e o silêncio do Estado

O barulho da bala e o silêncio do Estado

R$ 5 milhões em fuzis. Repito: R$ 5 milhões. É o valor do arsenal apreendido na operação no Rio de Janeiro. 91 armas de guerra, somadas e precificadas como se fossem mercadoria de exportação. No noticiário, o espanto; nas favelas, o déjà vu. A manchete chega com o mesmo enredo de sempre: a polícia sobre o morro, apreende, exibe, contabiliza. O país se indigna por um instante e, logo depois, se acomoda no conforto da ignorância.

Mas o fuzil não nasce no beco. Ele não brota no barranco, não é moldado em oficina de quintal, não vem nas costas de quem vende água no sinal. Ele atravessa portos, estradas e fronteiras. Passa por scanners, por carimbos, por autoridades que enxergam o que preferem fingir não ver. Cada fuzil tem uma certidão de omissão, um documento carimbado pela negligência. O mesmo Estado que falta à escola e ao hospital está presente na liberação da carga, no container que passa, no caminhão que segue viagem.

Essas armas são heranças de um país que sempre escolheu o atalho. Que investe na repressão, mas desarma a educação. Que se orgulha de operações milionárias e esquece que cada arma apreendida é um espelho do seu próprio fracasso. Porque o problema não é só o tráfico, é a rota que o alimenta. É a hipocrisia de um sistema que financia a guerra e vende a paz como promessa eleitoral.

Há algo de quase cínico em ver o Estado celebrar a apreensão de R$ 5 milhões em fuzis enquanto hospitais improvisam gaze e professores compram material com o próprio salário. É o mesmo dinheiro que poderia ter mudado o destino de centenas de vidas, mas que se transforma em aço, pólvora e morte. O que o Estado chama de combate é, na verdade, um ritual de autopreservação. Uma encenação cíclica onde o inimigo é sempre o mesmo e o herói, o mesmo agente que lucra com o caos.

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O curioso é que, em toda essa trama, o Estado está em todas as cenas, menos na do arrependimento. Está na fronteira que não fiscaliza, no servidor que fecha os olhos, no gabinete que transforma descuido em política. Está até na retórica: “guerra ao crime”. Mas essa guerra nunca acontece no asfalto, na fronteira, nos escritórios que financiam e no poder político que valida. O fogo é sempre cruzado no mesmo CEP.

A favela não fabrica fuzil, mas fabrica resistência. E é essa resistência que incomoda. Porque ela denuncia, mesmo em silêncio, o quanto o Brasil se acostumou a naturalizar o inaceitável. A cada operação, o helicóptero sobe, a câmera filma, o povo assiste. E o ciclo recomeça. O que deveria ser exceção virou coreografia de um país que aprendeu a medir segurança pelo número de corpos caídos.

No fim, a pergunta que resta não é de onde vieram os fuzis, mas quem lucra quando eles chegam. Porque a bala é só o meio; o fim é o poder. E enquanto o país continuar tratando a violência como espetáculo, continuará premiando os verdadeiros responsáveis: os que vendem, os que permitem, os que silenciam.

O fuzil não nasce no beco. Ele nasce na ausência. E é essa ausência que dispara todos os dias.

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