Opinião: Samuel de Assis acerta ao cobrar mudança na dramaturgia por representatividade negra

Opinião: Samuel de Assis acerta ao cobrar mudança na dramaturgia por representatividade negra

A declaração do ator Samuel de Assis à “Folha de S.Paulo” não poderia ser mais certeira — nem mais urgente. “Não basta ter pessoas pretas em cena se a dramaturgia continua com uma visão branca”. A fala resume de forma direta um problema estrutural que ainda persiste, inclusive (e talvez principalmente) dentro da maior emissora do país: a TV Globo.

Nos últimos anos, a Globo avançou na escalação de atores negros em papéis centrais, como o próprio Samuel, que está no ar em “Três Graças”. Mas essa conquista, embora importante, ainda é superficial se não vier acompanhada de mudanças reais nos bastidores. Não adianta ter rostos negros em cena se quem escreve, dirige, edita, pesquisa e produz essas histórias continua majoritariamente branco.

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Quando a narrativa é controlada apenas por pessoas brancas, mesmo que com boas intenções, o olhar sobre a experiência negra corre o risco de ser filtrado, higienizado, estereotipado ou romantizado. A representatividade plena só será possível quando pessoas negras tiverem autonomia real para contar suas próprias histórias, com sua complexidade, nuances e subjetividades — não apenas como personagens, mas como criadoras de conteúdo.

Na Globo, essa transformação ainda caminha a passos lentos. São raros os autores negros com espaço para desenvolver novelas próprias. A maioria dos roteiros que abordam questões raciais ainda são supervisionados por núcleos brancos ou têm um protagonismo branco como ponto de partida. A presença de diretores pretos é igualmente escassa, o que reforça a desigualdade na tomada de decisões criativas.

Além disso, a ausência de profissionais negros em cargos de pesquisa, assistência de direção, coordenação de elenco ou produção interfere diretamente no resultado final. Sem diversidade real nas equipes, os roteiros falham em capturar com fidelidade as vivências negras. Falta escuta, falta repertório, falta sensibilidade. E isso não se resolve apenas com mais atores no vídeo — se resolve com inclusão de verdade.

Samuel de Assis está certo ao dizer que é preciso mudar quem escreve e dirige. Porque só quando as histórias forem contadas a partir de múltiplos olhares — inclusive e especialmente os negros — é que a dramaturgia brasileira vai conseguir romper de vez com a lógica colonizada que ainda a rege.

A Globo, como líder do setor e formadora de imaginário coletivo, tem a responsabilidade de abrir esses caminhos. Representatividade não pode ser só visual. Precisa ser estrutural.

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