Direitos não caminham sozinhos (Por Hubert Alquéres)

Direitos não caminham sozinhos (Por Hubert Alquéres)

Em setembro de 1956, na pequena cidade de Clinton, no Tennessee, doze adolescentes negros precisaram ser escoltados por policiais estaduais para atravessar o portão de uma escola pública até então reservada apenas a brancos. A decisão de integrar a escola cumpria uma ordem judicial e um princípio constitucional já afirmado dois anos antes pela Suprema Corte americana. Ainda assim, exigiu proteção armada, patrulhamento permanente e a suspensão temporária da normalidade urbana. A democracia, ali, precisou de escolta.

Entre aquelas crianças estava Jo Ann Allen Boyce, então com 14 anos. Não liderava um protesto nem fazia um gesto simbólico calculado. Apenas caminhava para a sala de aula. Mas aquela travessia condensava uma tensão central da vida democrática: direitos não se realizam sozinhos. Quando avançam, deslocam estruturas, ferem hábitos e expõem resistências que não se dissolvem por decreto.

A reação foi violenta. Durante semanas, estudantes negros foram hostilizados, cercados, empurrados, insultados. A cidade entrou em convulsão. O governador precisou mobilizar a Guarda Nacional. O custo político da integração ficou evidente: a lei estava do lado das crianças, mas a sociedade ainda não.

O episódio de Clinton não foi isolado. Ele se inscreve no coração do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, num momento em que o país era obrigado a confrontar suas próprias contradições. A escravidão havia sido abolida quase um século antes; a segregação, porém, seguia viva nos costumes, nas instituições e na distribuição concreta de oportunidades. A igualdade formal já existia. A igualdade real, não.

É nesse ponto que a história de Jo Ann deixa de ser apenas um registro do passado americano e passa a dialogar com dilemas contemporâneos. Democracias liberais tendem a supor que basta declarar direitos para que eles se tornem realidade. Mas a experiência mostra o contrário: direitos ampliam o espaço público e, justamente por isso, produzem atrito. Exigem proteção institucional, tempo de maturação social e disposição para enfrentar desconfortos.

Setenta anos depois, o debate reaparece sob outras formas. Políticas de ação afirmativa — em especial as cotas raciais — seguem provocando resistência, inclusive em sociedades que se consideram modernas, abertas e igualitárias. Os argumentos mudaram de tom, mas não de fundo. Já não se invoca a segregação explícita, e sim a defesa abstrata da meritocracia, da neutralidade racial ou da igualdade “sem adjetivos”.

A dificuldade é reconhecer que desigualdades persistentes não são apenas fruto de escolhas individuais, mas de estruturas históricas que se reproduzem mesmo quando a lei se declara imparcial. Foi exatamente isso que a experiência americana revelou nos anos 1950 e 1960: retirar a barreira legal não bastava para abrir, de fato, o acesso. O portão da escola podia estar juridicamente aberto, mas socialmente bloqueado.

No Brasil, o debate seguiu caminho semelhante. A constitucionalidade das cotas raciais foi afirmada pelo Supremo Tribunal Federal há mais de uma década. Ainda assim, a política continua sendo contestada, frequentemente sob o argumento de que critérios socioeconômicos seriam suficientes. A evidência empírica, no entanto, mostra que desigualdades raciais e desigualdades de renda não se sobrepõem integralmente. Ignorar esse dado é repetir, com outra linguagem, a recusa americana à integração escolar: aceitar a igualdade no plano abstrato, rejeitá-la quando ela se traduz em política concreta.

Há um desconforto moral subjacente a esse debate. A ideia de reparação — ainda que indireta — desafia a noção liberal clássica de que cada indivíduo responde apenas por seus próprios atos. Mas a democracia não é apenas um sistema de responsabilização individual; é também um arranjo coletivo de correção de assimetrias que se perpetuam no tempo. Quando instituições reconhecem isso, não estão negando o mérito, mas tentando criar condições mínimas para que ele possa existir.

O episódio de Clinton ajuda a iluminar esse ponto. Aquelas crianças não foram escoltadas porque eram “menos capazes” ou “mais frágeis”, mas porque o ambiente social lhes era hostil. A escolta não era um privilégio, mas um instrumento de acesso. O mesmo raciocínio sustenta políticas afirmativas: não criam vantagens artificiais, mas reduzem obstáculos reais.

Jo Ann Allen Boyce seguiu sua vida longe dos holofotes. Tornou-se enfermeira, construiu uma trajetória profissional discreta e nunca reivindicou protagonismo político. Faleceu na semana passada, aos 84 anos. Deixa a memória de um episódio histórico e a marca de uma travessia que ajudou a redefinir os limites da democracia americana.

Sua caminhada até a escola não foi um gesto épico. Foi apenas um passo. Mas há passos que, dados no momento certo, mudam o rumo da história — e lembram que a democracia, às vezes, avança escoltada, antes de conseguir andar sozinha.

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