Telespectadores vêm reclamando que “Dona de Mim” estaria passando do limite ao mostrar crianças envolvidas em golpes e pequenos trambiques, ainda que tudo seja tratado em tom de humor. Para parte do público, esse tipo de situação não combina com o horário das sete e causa desconforto ao colocar personagens infantis no centro de ações claramente erradas e ainda por cima de forma “lúdica”.
O estopim da reação está nas cenas que marcam a volta de Ellen, personagem de Camila Pitanga, agora assumidamente uma trambiqueira. Ao lado de Hudson (Emílio Dantas), ela engata uma série de golpes que acabam envolvendo Igor (Theo Matos) e Sofia (Elis Cabral), duas crianças que entram na engrenagem das armações dos adultos.
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É impossível ignorar que ver crianças participando de esquemas, ainda que fictícios, provoca incômodo. Não é confortável, não é leve e tampouco é algo que se espere com naturalidade em uma novela das sete. Esse estranhamento do público, portanto, é legítimo e merece ser ouvido.
Por outro lado, é preciso colocar a discussão em perspectiva. “Dona de Mim” é uma obra de ficção, escrita dentro de um gênero que tradicionalmente mistura humor, exagero e situações moralmente tortas para provocar conflito e movimentar a trama. Nada ali sugere glamourização do crime ou incentivo a comportamentos ilícitos. Pelo contrário: os personagens adultos envolvidos são claramente retratados como problemáticos, oportunistas e eticamente questionáveis.
Curiosamente, a mesma novela já vinha sendo acusada de ser densa demais para o horário, pesada, com conflitos dramáticos que destoavam da leveza esperada da faixa. Agora, ao apostar em um tom mais farsesco e popular, surge a crítica oposta. Isso revela menos uma incoerência da trama e mais a dificuldade de agradar expectativas contraditórias do público.
O ponto central não deveria ser se a novela “pode” ou “não pode” mostrar crianças em situações erradas, mas como essa história será desenvolvida e quais consequências narrativas essas escolhas terão. Dramaturgia não é manual de conduta. Ela existe para provocar, incomodar, tensionar e, muitas vezes, retratar comportamentos que não devem ser imitados.
Limitar excessivamente a criação por medo de interpretações literais é um caminho perigoso. Se toda situação potencialmente desconfortável for vetada, resta pouco espaço para conflito, ambiguidade e crítica social. No fim das contas, talvez o maior erro seja tratar a ficção como se fosse uma cartilha — quando ela sempre foi, e sempre será, um espelho distorcido da realidade.