Um vídeo de pouco mais de dois minutos, gravado em 23 de maio de 2024, virou a peça central de uma investigação que aponta como integrantes da Polícia Civil atuaram para “enterrar” um inquérito, pelo valor de R$ 1 milhão, que mirava Wagner Nascimento de Souza, o Costurado, ligado ao Primeiro Comando da Capital (PCC). Dois dos agentes de segurança foram presos nesta quarta-feira (10/12).
Nas imagens, recuperadas em nuvem pela Polícia Federal (PF), o advogado Ademilson Alves de Brito aparece em videochamada com o investigador Murilo Muniz e o agente Alan Fernandes Dias, ambos lotados no Departamento Estadual de Narcóticos (Denarc). O diálogo, transcrito na denúncia do Grupo que Investiga o Crime Organizado (Gaeco), mostra passo a passo como os policiais orientaram o defensor sobre o “encaminhamento” do caso, que havia se tornado incômodo para o grupo criminoso, que era investigado por tráfico de drogas.
“Eu vou conversar com o escrivão, tá para terça, quarta-feira”, afirma Murilo, em referência ao escrivão Wander Tadeu de Araujo, igualmente citado no processo como peça essencial para dar aparência formal ao encerramento da apuração.
Registro de chamada em vídeo foi determinando para relacionar ação de policiais em benefício de Costurado, do PCC
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Policial civil aparece em conversa de vídeo
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O agente policial Alan Fernandes Dias em video-chamada usada pelo MPSP em denúncia
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O investigador Murilo Muniz, do Denarc, teria negociado com advogado valor para interromper investigação
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“Ninguém deve nada?”
“Tá bom, eu posso ficar tranquilo então, que esse assunto tá encerrado, matou a nota? Ninguém deve nada?”, indaga o advogado ao policial, que responde: “Acabou, parou… usa isso a seu favor”, mencionando que o juiz havia negado um pedido de busca e apreensão relacionado ao caso e que, essa negativa, deveria ser explorada para justificar o encerramento do inquérito.
As falas revelam não só a naturalidade com que o grupo discutia o direcionamento de um procedimento sigiloso, mas também a consciência de que o pagamento mencionado pelo advogado, e aceito sem objeção pelos policiais, selaria o destino da investigação.
“Costurado” e o interesse do PCC
Costurado, apontado pela PF e MPSP como operador financeiro do PCC, na rota entre Mato Grosso e São Paulo, havia sido identificado em investigação que desvendou o transporte de 345 kg de cocaína escondidos em um caminhão frigorífico.
O aprofundamento das diligências levaria à apuração de outros membros da organização. Foi nesse momento, entre o relatório assinado por Murilo e Alan em 8 de maio de 2024 — além do vídeo gravado quinze dias depois — que surgiu a articulação para bloquear o avanço da investigação sobre a célula da maior facção criminosa do país.
A denúncia, obtida pelo Metrópoles, mostra que o próprio relatório final do inquérito, assinado pelo escrivão Wander, acabou por indiciar apenas um nome secundário, abrindo caminho para o arquivamento por falta de provas.
A engrenagem interna e o papel do Denarc
O material reunido pelo Gaeco descreve a infiltração de interesses privados na estrutura do Denarc. As conversas mostram que Murilo e Alan tratavam o andamento do inquérito como barganha direta, enquanto Wander aparecia como o funcionário capaz de dar formalidade ao desfecho desejado.
Em um dos trechos, Ademilson pergunta se poderia “ficar tranquilo” e se a investigação “não iria dar nada” para Costurado. Ele é tranquilizado por um dos policiais.
Para o MPSP, a atuação dos três policiais civis configurou “desvirtuamento de inquérito policial” mediante pagamento ilícito.
Patrimônios incompatíveis
A apuração também escancara uma sequência de aquisições feitas pelos policiais civis pouco depois do vídeo da negociação, consideradas incompatíveis com os salários dos agentes de segurança.
Cinco dias após a gravação, Murilo comprou um apartamento no condomínio Living Ipiranga, avaliado entre R$ 890 mil e R$ 1,25 milhão no mercado. O financiamento exige parcelas de R$ 6.550,80, quase equivalentes ao salário líquido do investigador (R$ 7.245,83). Além disso, ele é proprietário de outro imóvel em Santos, litoral paulista, e de uma motocicleta. Já sua esposa, como apontado pela Promotoria, consta com outros quatro imóveis e um Jeep Renegade registrados em seu nome.
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A esposa do policial Alan Fernandes Dias, Leda Ferreira da Costa, adquiriu à vista um apartamento em Osasco por R$ 215 mil, meses após o vídeo. A família também administra empresas que mudaram de natureza repentinamente, sugerindo atividade econômica artificial, de acordo com a denúncia obtida pelo Metrópoles.
Já o escrivão Wander Tadeu de Araújo comprou um apartamento de R$ 250 mil, neste ano, e possui outros dois imóveis, além de um Jeep Compass e uma motocicleta nova, ambos financiados.
Advogado condenado por sequestro
Ademilson Alves de Brito foi condenado no passado por extorsão mediante sequestro. Segundo a investigação, ele mantém em seu nome e no da esposa uma frota de carros de luxo, entre eles um Porsche Cayenne blindada, Jaguar, Ford Ranger Raptor, Land Rover Evoque e uma BMW 320i.
Para o Gaeco, o padrão de vida dos envolvidos reforça a suspeita de que o pagamento de R$ 1 milhão abasteceu a movimentação patrimonial registrada meses depois.
A rota do dinheiro
O MPSP ainda afirma na denúncia que o R$ 1 milhão acertado destinava-se a garantir que Costurado e outros integrantes da organização não fossem alcançados por novas diligências. A negativa judicial a um pedido de busca, citada por Murilo na chamada, foi usada como justificativa para “enterrar” o que restava da investigação.
O inquérito então foi concluído com indiciamento mínimo e o grupo responsável pelo tráfico permaneceu intacto.
Prisões, buscas e sequestro de bens
Diante das evidências, o juiz Tiago Ducatti Lino Machado decretou a prisão preventiva de Murilo, Alan e Ademilson, expediu mandados de busca e apreensão nas casas dos investigados, nas salas do Denarc, além de solicitar o bloqueio de bens até o limite de R$ 1 milhão.
As medidas foram cumpridas pela Polícia Federal em conjunto com a Corregedoria da Polícia Civil, que não localizou itens ilegais somente na casa do escrivão– em Mairiporã, Grande São Paulo — durante o cumprimento dos mandados, na manhã desta quarta-feira (10/12).
O que diz a SSP
Secretaria da Segurança Pública (SSP) afirmou que não tolera desvios de conduta por parte de seus agentes e que todas as medidas administrativas cabíveis serão adotadas, sem prejuízo das apurações criminais e disciplinares. “A pasta permanece colaborando com as autoridades responsáveis para o completo esclarecimento dos fatos”, afirmou em nota.
A defesa dos policiais não foi localizada. O espaço segue aberto para manifestações.