Entre janeiro de 2021 e 29 de junho de 2022 foram apresentados na Câmara dos Deputados pelo menos sete projetos de lei que preveem restringir ainda mais o aborto no Brasil.
Eles propõem aumentar as punições a quem faz esse procedimento; exigir boletim de ocorrência das vítimas de violência sexual; proibir qualquer teste, comercialização e descarte de embriões; e alterar a Legislação para estabelecer os direitos de um feto.
A informação faz parte de um levantamento da organização não governamental Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), que contabilizou ao todo 13 novos projetos de lei relacionados ao tópico apresentados na Câmara no período. Desses, um é favorável à ampliação do direito, segundo a organização.
Os demais, além de buscarem restringir a prática, preveem criminalizar qualquer tipo de propaganda ou distribuição de material sobre o aborto, propõem fazer algum tipo de campanha contra a prática ou proíbem parcerias entre a administração pública e organizações da sociedade civil que promovam o tema, de acordo com o centro.
A Cfemea realiza análises semanais e anuais sobre projetos apresentados e em tramitação no Congresso Nacional. O último relatório oficial publicado traça um retrato do ano de 2021 no Legislativo, e, à pedido da BBC News Brasil, o centro compilou os dados mais recentes, até 29 de junho de 2022.
Segundo a cientista política e assessora técnica do Cfemea, Priscilla Brito, a tendência observada nos projetos de lei, de um predomínio de proposições que restringem mais o aborto, se repete também com outros tipos de proposições, como projetos de decreto legislativo, propostas de emenda constitucional e requerimentos diversos apresentados e em tramitação tanto na Câmara quanto no Senado.
“Os projetos de decreto legislativo têm sido muito usados atualmente pela oposição para se contrapor ao governo, mas eles raramente avançam”, comenta Brito.
Ao mesmo tempo, explica Brito, o estudo do Cfemea trata das medidas mais recentes porque existe mais de uma centena de proposições que tratam do aborto no Congresso. “Mas alguns estão parados há anos e dificilmente avançarão”, diz.
O levantamento se concentra na Câmara porque a Casa é onde o tema costuma gerar mais repercussões. “Há ainda menos projetos de lei que têm origem no Senado e, em geral, eles não tramitam tão rápido quanto os que saem da Câmara”, afirma Brito.
Segundo a especialista, o maior número de projetos de lei contra o aborto é um reflexo de um crescimento significativo da bancada mais conservadora no Congresso Nacional, ao mesmo tempo em que há uma contração do campo de esquerda. Brito afirma ainda que o uso político da pauta pode contribuir para isso.
“Desde a primeira apresentação do Estatuto do Nascituro em 2007, inaugurou-se uma tendência de pautar o direito à vida com mais força. Na atual Legislatura, a base aliada do governo está ainda mais ativa nesse sentido”, diz.
O tema voltou à tona nas últimas semanas depois que o caso de uma menina de 11 anos, vítima de estupro, repercutiu em todo o país. A criança teve o direito ao aborto legal inicialmente negado em Santa Catarina, mas conseguiu realizar o procedimento depois de uma recomendação do Ministério Público Federal (MPF).
A divulgação da história da atriz Klara Castanho também provocou discussões em torno do assunto. A jovem de 21 anos publicou em suas redes sociais um texto contando que foi vítima de violência sexual, engravidou em consequência do estupro e que, mesmo tendo direito ao aborto legal, decidiu levar a gravidez até o fim e, posteriormente, entregou a criança para adoção.
Ela disse ainda que, logo após o parto, enquanto ainda estava sob os efeitos da anestesia, foi abordada por uma enfermeira do hospital que ameaçou vazar sua história para a imprensa.
O caso levou à apresentação do único projeto de teor mais favorável à ampliação do direito ao aborto protocolado na Câmara no período, segundo o Cfemea.
O PL 1763/2022, do deputado Ricardo Silva (PSD/SP), busca alterar o Código Penal para incluir um artigo que cria o crime de divulgação de informações sobre a vítima de crime contra a dignidade sexual. Entre os dados que o projeto busca impedir que sejam divulgados, está a prática do aborto legal.
Restrição ao aborto
Atualmente, o aborto é legal no Brasil nos casos em que a gravidez é decorrente de estupro, quando há risco à vida da gestante ou quando há um diagnóstico de anencefalia do feto — este último caso foi garantido por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012.
Em qualquer outra circunstância, é considerado crime, previsto no Código Penal de 1940. A pena varia de um a três anos de prisão, para a mulher, e de um a dez anos para quem realiza ou auxilia o procedimento.
Entre as propostas que preveem restringir ainda mais o aborto no país apresentadas desde 2021 está o PL 2125/2021, do deputado Junio Amaral (PSL-MG).
O projeto visa aumentar as penas para até 20 anos para mulheres que interrompem a própria gestação ou permitem que outra pessoa realize o procedimento, e até 30 anos para quem realiza ou auxilia um aborto sem o consentimento da gestante ou em menores de 14 anos e pessoas com deficiência mental.
A proposta foi fundida com outra apresentada também em 2021, o PL 4148/2021, que visa a aumentar a pena aplicada a quem ajuda alguém a abortar se essa pessoa for “o cônjuge ou a companheira”.
O PL 232/2021, também protocolado no período, propõe alterar a lei para tornar obrigatória a apresentação de boletim de ocorrência com exame de corpo de delito positivo que ateste a veracidade do estupro, para realização de aborto decorrente de violência sexual. A proposta é de autoria das deputadas Carla Zambelli (PL-SP) e Major Fabiana (PSL-RJ).
Ainda foram apresentados em 2021 o PL 299/2021, que visa a proibir qualquer forma de manipulação experimental, comercialização e descarte de embriões humanos, e o PL 1515/2021, que busca vedar a realização de qualquer procedimento de natureza abortiva na modalidade telemedicina.
Já o PL 434/2021 prevê instituir o Estatuto do Nascituro — o termo “nascituro” é um sinônimo para feto. A proposta estabelece, entre outras coisas, que “a personalidade civil do indivíduo humano começa com a concepção” e que “o nascituro goza do direito à vida, à integridade física, à honra, à imagem e de todos os demais direitos da personalidade”.
O projeto, das deputadas Chris Tonietto (PSL-RJ) e Alê Silva (Republicanos-MG), prevê alterações no Código Penal e na Lei nº 8.072 de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos. Ele foi apensado a outra proposição, de 2018, que trata do mesmo tema.
Já em 2022 foi apresentado o PL 883/2022, de autoria de Zambelli, que tem como objetivo alterar o Código Civil para incluir disposições referentes ao direito do nascituro e criar, no Código Penal, o crime de incitação ao aborto.
Ele foi anexado a outro projeto, de 2007, que trata do mesmo tema e está pronto para pauta na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher.
Outros projetos
Entre os 13 projetos de lei contabilizados pelo Cfemea, pelo menos quatro buscam criminalizar propaganda ou distribuição de material sobre o aborto, propõem fazer algum tipo de campanha contra a prática ou proíbem parcerias entre a administração pública e organizações da sociedade civil que promovam o tema, de acordo com o centro.
No ano passado, foi protocolado o PL 2451/2021, apresentado pelo deputado Loester Trutis (PSL-MS), que busca penalizar quem, de qualquer modo, criar, produzir, divulgar, incitar, reproduzir, distribuir ou financiar por meio digital, rádio e televisão, ou em materiais impressos, mesmo que de forma gratuita, campanhas de incentivo ao aborto.
A pena seria de três a dez anos de prisão e multa, com acréscimos em casos de uso de recursos públicos ou campanhas realizadas dentro de instituições de ensino.
O projeto foi apensado a outro, de 2013, que torna um crime contra a vida o anúncio de meio abortivo e prevê penas específicas para quem induz a gestante ao aborto. Ele já está pronto para entrar na pauta no plenário.
Já o PL 1753/2022, de Tonietto, foi apresentado pouco depois que o caso da menina de 11 anos, que realizou aborto legal após estupro em Santa Catarina, repercutiu na imprensa. A proposição prevê que as parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil atendam aos interesses do nascituro, da criança e do adolescente.
“O novo texto prevê expressamente o impedimento de parcerias da administração pública com organizações que façam apologia ou promovam, por qualquer meio, a prática direta ou indireta do aborto”, afirmou Tonietto sobre o projeto em suas redes sociais.
Há também proposições para instituir o Dia Nacional do Nascituro e de Conscientização sobre os Riscos do Aborto e a Semana Nacional de Celebração da Vida.
Em 2022 ainda foi protocolado o PL 344/2022, que dispõe sobre a sustação de atos normativos do Judiciário que exorbitem da sua atribuição jurisdicional em face da competência legislativa do Congresso Nacional, mas foi retirado pela autora, a deputada Caroline de Toni (PSL-SC).
CRÉDITO,AGÊNCIA BRASIL
Ao todo, atualmente tramitam na Câmara e no Senado mais de uma centena de proposições que tratam do aborto, apresentadas ao longo de muitos anos, segundo o Cfemea.
Em 2022, mais especificamente até 29 de junho, o centro contabilizou 51 proposições tratando do tema no Congresso Nacional, entre projetos de lei apresentados ou movimentados (14), projetos de decreto legislativos (15), emendas (3) e requerimentos diversos (19).
Já em todo o ano de 2021, foram 26 proposições, entre projetos de lei (19), projetos de decreto legislativo (6) e propostas de emenda constitucional (1).
Lados opostos da Câmara
Segundo o levantamento do Cfemea, Chris Tonietto é a deputada campeã de proposições de temas relacionados ao aborto na Câmara no período analisado.
À BBC News Brasil, a parlamentar afirmou ter mais de 30 proposições legislativas (entre projetos de lei, requerimentos, projetos de decreto legislativo etc.) que tratam diretamente do assunto em tramitação no Congresso atualmente.
“Meu objetivo com esses projetos nada mais é do que proteger integralmente o mais frágil e inocente dos seres que é o nascituro e fazer valer o seu direito fundamental e inviolável à vida, consagrado na Constituição da República como cláusula pétrea, inclusive”, disse a deputada.
Segundo Tonietto, o projeto mais importante de sua legislatura é o PL 2893/2019, que revoga o artigo 128 do Código Penal, que trata dos casos em que a interrupção da gravidez é prevista em lei: quando a gestação decorre de estupro ou quando a gravidez representa risco à vida da mulher.
“Considero-o o mais importante projeto de minha legislatura e também para o eleitorado, porque expressamente visa coibir as ameaças a esse direito fundamental que é consagrado na nossa Lei Maior”, afirmou.
Do outro lado do espectro político, a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) é uma das maiores defensoras da manutenção e ampliação do direito ao aborto no Congresso. A deputada afirma que seu maior objetivo é mostrar que “não é um fato dado que não se pode debater esse tema na Câmara ou que não existe necessidade social entre as mulheres para que se discuta isso”.
“É um tema de saúde pública e proteção acima de tudo e há necessidade e urgência de discuti-lo”, diz Bomfim.
CRÉDITO,GETTY IMAGES
A deputada é responsável, ao lado de outras legisladoras de seu partido, pelo PL 4297/2020, que dispõe sobre a criação de uma zona de proteção no entorno dos estabelecimentos de saúde que prestam o serviço de aborto legal e serviços que prestam atendimento especializado a mulheres vítimas de violência sexual.
A proposição foi apresentada em 2020 e está aguardando parecer do relator na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado.
“O objetivo é que não vejamos mais se repetirem cenas como as registradas no caso da menina do Espírito Santo, quando organização de turbas conservadoras tentaram violar o direito dela de ter a opção do aborto”, afirmou a deputada, se referindo ao caso de uma criança de 10 anos que em 2020 enfrentou dificuldades para realizar o procedimento após ser abusada pelo próprio tio e engravidar.
Tonietto e Bomfim protagonizaram uma discussão na quarta-feira (6/7) na Comissão da Mulher na Câmara. A sessão debatia a aprovação de uma Moção de Aplauso e Reconhecimento à juíza Joana Ribeiro Zimmer, “pela corajosa e exemplar defesa do direito à vida desde a concepção”.
Em audiência no dia 9 de maio, Ribeiro Zimmer iinduziu a menina de 11 anos, vítima de estupro em Santa Catarina, a desistir de fazer um aborto legal.
O pedido de homenagem à juíza foi apresentado por Chris Tonietto e pelo deputado federal Diego Garcia (Republicanos-PR). Os ânimos se exaltaram durante a análise do requerimento.
Esquerda minoritária, bancada conservadora e plataforma eleitoral
Segundo Priscilla Brito, o predomínio de projetos que buscam restringir ainda mais o aborto no Brasil em relação aos que buscam ampliar o direito pode ser explicada por três principais fatores.
O primeiro está relacionado ao fato do campo de esquerda no Congresso Nacional ser minoritário atualmente.
“Mesmo dentro do campo de esquerda, o número de parlamentares que defendem a manutenção ou a ampliação do direito ao aborto é muito pequeno. Em geral, são apenas as mulheres do campo progressista identificadas com a pauta feminista”, diz Brito.
Ao mesmo tempo, segundo a pesquisadora, houve uma ampliação significativa da bancada mais conservadora no Legislativo após as eleições de 2014 e 2018.
O PL, partido do presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, tem 77 deputados na Câmara atualmente.
De acordo com Brito, o terceiro fator é a proximidade das eleições.
“O aborto é uma pauta relativamente fácil de converter em uma plataforma política conservadora”, diz a cientista política. “A proximidade do período eleitoral faz com que os parlamentares conservadores usem isso como plataforma política e eleitoral.”
“O próprio governo, ao notar que o jogo eleitoral está desfavorável para o presidente Bolsonaro neste momento, começa a usar a pauta para agitar sua base eleitoral e ganhar a simpatia da população mais conservadora.”
Para a professora de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) Cristiane Cabral, a influência profunda da religião na esfera pública no Brasil também contribui para que existam mais projetos que visam a restringir e criminalizar o aborto no país.
“Há uma união entre representantes evangélicos e católicos para oposição à questão do aborto”, diz Cabral. “Até o aparato de Estado está povoado por uma ideologia moral cristã.”
CRÉDITO,GETTY IMAGES
Na semana passada, o ministro Edson Fachin, do STF, pediu que o governo dê mais informações sobre sua política em relação à interrupção voluntária da gravidez.
O pedido foi feito após um documento disponível no site da Biblioteca Virtual em Saúde do Ministério da Saúde dizer que “não existe aborto ‘legal'” e defender que os casos em que há “excludente de ilicitude” sejam comprovados após “investigação policial”.
Fachin é relator de uma ação apresentada por quatro entidades de saúde que pedem para o STF impedir que o governo e decisões judiciais possam restringir o aborto legal para gestações de até 22 semanas. As entidades pedem ainda que o Supremo determine a imediata suspensão da cartilha do Ministério da Saúde.
O tema entre a sociedade brasileira
Para Priscilla Brito, porém, o maior número de projetos contra o aborto no Congresso não necessariamente traduz o sentimento da população brasileira em relação à prática. “O Congresso está um pouco mais conservador do que a sociedade, o que está diretamente relacionado com o uso político da pauta do aborto por algumas bancadas”, diz.
Cristiane Cabral avalia: “Nem todos têm educação política para entender que, ao votarmos, estamos também elegendo projetos políticos de partidos, não apenas indivíduos”.
Algumas das últimas pesquisas feitas sobre o tema mostram uma aceitação maior da população em relação ao aborto da forma como ele está previsto na lei atualmente, ou seja, legal apenas em casos de estupro, risco à vida da gestante ou diagnóstico de anencefalia do feto, do que à ampliação do direito.
Uma pesquisa do Datafolha divulgada no início de junho mostrou que 39% dos brasileiros entrevistados consideram que a lei deve permanecer como está, enquanto 26% disseram acreditar que o aborto deve ser permitido em mais situações ou em todas as situações.
Por outro lado, 32% disseram concordar com a total restrição da interrupção da gravidez no país. Em dezembro de 2018, a taxa era de 41%.
Em termos globais, a edição de 2021 do estudo Global Views on Abortion, da Ipsos, classificou o Brasil como o quinto país menos favorável à legalização total do aborto em um conjunto de 27 nações analisadas.
Na pesquisa, 31% dos brasileiros disseram ser favoráveis à descriminalização do aborto sempre que for o desejo da mulher — a média nos países pesquisado foi de 46%.
O estudo apontou ainda que 33% afirmaram que “o aborto deve ser permitido em determinadas circunstâncias, por exemplo, no caso de uma mulher ter sido estuprada”; 16% disseram que “o aborto não deve ser permitido em hipótese alguma, exceto quando a vida da mãe estiver em risco”; e 8% responderam que “o aborto nunca deve ser permitido, não importando sob quais circunstâncias” — 13% não souberam ou não quiseram opinar.