A faixa de território que divide a Península da Coreia em Norte e Sul é a área mais pesadamente fortificada do mundo. Há torres de vigilância e barricadas de arame farpado, altas cercas conectadas a alarmes, pontos de controle e postos de vigia de ambos os lados da fronteira, ocupados 24 horas por dia. Ela tem 257 quilômetros de extensão e quatro quilômetros de profundidade, e é semeada de 1 milhão a 2 milhões de minas.
“Fronteira da Liberdade” é como a denominam as tropas dos Estados Unidos e das Nações Unidas lá estacionadas desde que os três anos da Guerra da Coreia foram interrompidos por um instável armistício em 1953.
São defesas impressionantes, mas há um senão: do ponto de vista de Seul, elas constituem um baluarte contra uma invasão norte-coreana, não sendo destinadas a impedir que ninguém deserte para o Norte. Principalmente pela dificuldade de imaginar que qualquer um que tenha provado a vida fora da Coreia do Norte escolha viver no Estado mais repressor do mundo.
Mas foi exatamente isso que o soldado raso americano Travis King fez. O batedor de cavalaria de 23 anos, no Exército desde janeiro de 2021, acabara de ser liberado após servir 47 dias numa penitenciária sul-coreana, devido a uma briga com cidadãos locais.
Deserção dramática em passeio turístico
Na terça-feira (18/07), King estava sendo escoltado de volta aos Estados Unidos, para responder a inquérito disciplinar. Durante a viagem, contudo, conseguiu escapar de seus guardas. De trajes civis, chegou ao centro de Seul, onde se juntou a um grupo de estrangeiros fazendo uma excursão de ônibus à Zona Desmilitarizada.
Tais passeios tipicamente incluem tanto a visita a um terraço com vista para o Norte, quanto uma parada num dos túneis cavados por mineradores militares norte-coreanos – segundo se crê, como potencial rota de uma invasão pelas Forças Armadas do Norte.
Em seguida, os turistas chegam à Área de Segurança Conjunta (Joint Security Area, JSA), no lugarejo de Panmunjom, onde o armistício foi assinado em 27 de julho de 1953. A localidade é dividida entre Norte e Sul por uma barreira de concreto.
Aparentemente foi em Panmunjom que King decidiu agir. Segundo relatos de membros do grupo de turistas nas redes sociais, súbito ele teria sido visto atravessando os blocos de concreto que marcam a fronteira, rindo alto, antes que todos fossem afastados do local.
Acredita-se que o soldado americano tenha sido detido pelas autoridades da Coreia do Norte. Altos funcionários em Washington informaram que estão “interagindo” com a Coreia do Sul e a Suécia, no sentido de uma solução. Estocolmo mantém uma embaixada em Pyongyang e representa lá os interesses dos Estados Unidos.
“Ambição atroz” de ver uma prisão norte-coreana de dentro
As relações EUA-Coreia do Norte atravessam um nadir histórico no momento. Após demonstrativos lançamentos de mísseis de ambos os lados nos últimos dias, na manhã desta quarta-feira Pyongyang prosseguiu com a escalada, disparando no Mar do Japão mais dois projéteis balísticos de curto alcance.
“O mais recente lançamento de mísseis balísticos pela Coreia do Norte provavelmente não está relacionado ao fato de o soldado americano atravessar a fronteira interna coreana, mas um incidente desses também não contribui para a situação”, comenta Leif-Eric Easley, professor associado de estudos internacionais da Ewha Womans University de Seul.
“É provável que o regime Kim [Jong Un] vá tratar um transgressor de fronteira como ameaça militar, de inteligência e saúde pública, embora seja mais provável que esse indivíduo esteja mentalmente perturbado e agindo de forma impulsiva por questões pessoais. Eventos inesperados como esse evidenciam a necessidade de canais diplomáticos entre os governos, e comunicação periódica entre as forças militares.”
Embora as motivações do ato de King não estejam claras, ele não seria o primeiro americano a buscar refúgio na Coreia do Norte. Em abril de 2014, Matthew Miller rasgou seu visto de turista ao chegar ao Aeroporto de Pyongyang.
Natural da Califórnia, de 24 anos, ele disse ter uma “ambição atroz” de vivenciar uma prisão norte-coreana, para saber mais sobre a situação de direitos humanos no país. Um tribunal local o sentenciou a seis anos de trabalhos forçados, mas ele não serviu a pena completa: em novembro do mesmo ano foi libertado, juntamente com o missionário coreano-americano Kenneth Bae.
Originário do estado de Washington, Bae fora detido em novembro de 2012, quando guiava um grupo turístico, e condenado a 15 anos de prisão por “atos hostis”, que incluíam introduzir no país literatura proibida. As autoridades também o acusaram de montar um grupo clandestino para derrubar o governo.
“Atravessando a linha” desde a década de 60
No entanto o caso de Travis King parece ter mais a ver com os seis militares americanos que desertaram entre os anos 60 e 80. Larry Abshier tinha 19 anos quando passou para a Coreia do Norte, onde se instalou até morrer, em 1983. James Dresnok, de 21 anos, foi para o outro lado no mesmo ano, até sua morte em 2016. Jerry Parrish desertou em 1963, morrendo em 1998.
Charles Jenkins seguiu-os em 1965, mas casou-se com uma japonesa que fora sequestrada para o Norte. O casal teve dois filhos, e em 2004 conseguiu permissão de se mudar para o Japão. O desertor morreu em 2017.
Roy Chung desapareceu em 1979. Pyongyang alegou que ele desertara, mas sua família ainda insiste que foi sequestrado. Crê-se que morreu por volta de 2004. O desertor mais recente foi Joseph White, que em 1982 requereu asilo no Norte, onde morreu três anos mais tarde.
Em 2006 as biografias de Charles Robert Jenkins e James Joseph Dresnok foram tema do documentário Crossing the line (Atravessando a linha). Segundo o codiretor Nicholas Bonner: “Dresnok estava respondendo a uma corte marcial, e simplesmente estava farto de autoridades, tendo vindo de uma criação muito difícil, uma família desfeita.”
“Joe não se arrependia nem um pouco de ter abandonado os EUA, porque não tinha nenhuma lembrança boa de lá. Sua família não o queria, e ele cresceu num orfanato, depois a esposa o abandonou, então ele só queria ir embora.”
Bonner está convencido que Dresnok encontrou um senso de “lar” no Norte, onde ensinava inglês e participou de diversos filmes de propaganda, no papel de vilão americano. Ao morrer em Pyongyang em novembro de 2016, continuava jurando lealdade ao regime que o aceitara 54 anos antes.
No momento é impossível prever se Travis King adotará a mesma trilha. À emissora ABC, sua mãe, Claudine Gates, se disse chocada com as notícias da travessia. “Não consigo ver Travis fazendo nada disso”, afirmou, acrescentando que só queria que o filho “venha para casa”.
Por: G1 – Mundo.