Um homem negro preso injustamente por 12 anos, condenado por dez estupros contra mulheres na Grande São Paulo, foi solto nesta quinta-feira (16) pela Justiça.
Ele foi inocentado após exames de DNA da Superintendência da Polícia Técnico-Científica apontarem quem foi o verdadeiro estuprador que atacou as vítimas (saiba mais abaixo).
Carlos Edmilson da Silva tinha 24 anos quando foi preso em 10 de março de 2012 pela Polícia Civil de Barueri. À época, o jardineiro foi apontado pela investigação como o “maníaco” que havia atacado e abusado sexualmente de dez mulheres na cidade e na vizinha Osasco.
Carlos sempre negou os crimes, que ocorreram entre 2010 e 2012. Mas foi reconhecido por foto e depois presencialmente pelas vítimas na delegacia. Acabou julgado e condenado a pena de 137 anos, 9 meses e 28 dias de prisão em regime fechado pelos estupros.
Mas nesta tarde, ele deixou a Penitenciária de Itaí, no interior paulista, como um homem livre e inocente. Agora aos 36 anos, Carlos foi recepcionado pela mãe, Ana Maria da Silva.
“Não tenho nem palavras. Não consigo nem falar direito”, disse ele a seus advogados e a jornalistas que aguardavam do lado de fora da prisão. Carlos foi questionado sobre como estava se sentindo com a liberdade depois de mais de uma década enclausurado por crimes que não cometeu.
Veja acima vídeo gravado por sua defesa e enviado à reportagem.
Coincidentemente, o verdadeiro estuprador das dez mulheres está preso na mesma penitenciária de Itaí, onde Carlos ficou preso por 12 anos.
O verdadeiro abusador foi identificado pelo Núcleo de Biologia e Bioquímica do Instituto de Criminalística (IC) como José Reginaldo dos Santos Neres. Um homem negro também, atualmente com 34 anos, que cumpria pena por roubos. O material genético dele foi encontrado em cinco das dez vítimas. As outras cinco vítimas não fizeram exame sexológico.
A TV Globo e o g1, bem como emissoras e sites concorrentes, chegaram noticiar os estupros em série. A Polícia Civil comunicou a imprensa quando Carlos foi preso após ter sido reconhecido por vítimas na delegacia de Barueri. As mulheres relataram que os ataques ocorriam perto da Rodovia Castello Branco.
A Polícia Civil afirmou, por meio de nota, que se constatadas irregularidades na investigação, vai abrir apuração na Corregedoria. (leia mais abaixo)
Por que foi solto 12 anos depois?
Para o Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, chegarem a essa conclusão e revisarem e anularem as condenações contra Carlos, o Ministério Público (MP) pediu que o Instituto de Criminalística (IC) da Polícia Técnico-Científica fizesse algo que nenhuma outra autoridade havia pedido antes ao órgão: comparar o DNA das vítimas de estupro que acusavam o jardineiro com o material genético dele.
Os testes foram feitos naquelas cinco mulheres que foram a hospitais e permitiram que médicos coletassem resquícios de sêmen.
Por lei, presos condenados por crimes como estupro, homicídios, latrocínios e roubos violentos têm seu perfil genético extraído por peritos nas prisões. Se os presos aceitam, há progressão do regime fechado para outro mais brando.
IC fez exames de DNA
Ana Claudia Pacheco é responsável pelo Núcleo de Biologia e Bioquímico do IC que faz análises de DNA — Foto: Kleber Tomaz/g1
“Nós recebemos os vestígios coletados dos corpos das vítimas de crimes sexuais”, disse à reportagem a perita Ana Cláudia Pacheco, diretora do Núcleo de Biologia e Bioquímica. “A gente já pode concluir que o perfil do vestígio [de José] era igual entre as vítimas. Ou seja: era o mesmo indivíduo que tinha praticado esses diferentes crimes. Num primeiro momento a gente recebeu amostra de um suspeito [Carlos] e aí o DNA dele não era compatível com o DNA que estava nesses vestígios.”
Atualmente, o IC guarda materiais genéticos de mais de 13 mil pessoas presas (maioria homens, mas há também mulheres) no seu banco de DNA de criminosos condenados. Os presos fornecem saliva, coletada de suas bocas por cotonetes. As amostras ficam em papéis especiais ou têm a sequência genética codificada depois em computadores. Eles então cruzam os perfis e, em alguns casos, ocorrem os “matches” entre o material de uma vítima e de um suspeito, como nos casos de violência sexual.
“A análise de DNA criminal – ele não tem por único objetivo indicar a culpa, indicar quem pode ter participado de dado crime. Ela pode servir muito bem essa análise pra inocentar pessoas que estejam sendo falsamente acusadas”, falou Ana. “Porque no tema que a gente está conversando aqui, por exemplo, dos crimes sexuais, o reconhecimento visual é algo que ele vai estar comprometido pela forte emoção da vítima naquele momento, pela situação trágica, pelo trauma que ela ficou. E às vezes, a gente já teve situações de indivíduos serem muito parecidos e um deles estar sendo falsamente acusado.”
Reconhecimento fotográfico falho
Flavia Rahal, diretora e fundadora do Innocence Project Brasil, é mais enfática ao criticar o reconhecimento fotográfico ou pessoal de suspeitos feito pela polícia como única prova de algum crime. Segundo ela, que atuou com o instituto na defesa gratuita de Carlos, outros indícios têm de ser considerados numa investigação.
“As vítimas não estavam mentindo. Nós estamos diante de uma situação muito triste. De mulheres que foram estupradas e que foram levadas a acreditar que estavam reconhecendo o homem que as estuprou. Mas, infelizmente a forma como esse reconhecimento foi feito foi uma forma muito indutiva porque na grande maioria dos casos, elas foram confrontadas com uma única fotografia deste único rapaz, já com a afirmação de se tratar de uma pessoa que já estava sendo reconhecida em outros casos”, disse Flavia.
O Innocence Project Brasil é primeira organização brasileira dedicada especificamente a reverter erros do judiciário. O instituto não cobra dinheiro de seus clientes, a maioria deles carentes, como Carlos.
Advogada Flavia Rahal é diretora e fundadora do Innocence Projet Brasil — Foto: Kleber Tomaz/g1
O TJ fez a revisão criminal de três condenações de Carlos por estupros. O STJ revisou mais outros seis casos nos quais ele foi condenado, o último deles nesta semana. O entendimento das instâncias superiores da Justiça foi de que o reconhecimento dele foi falho, e influenciou as demais denúncias contra ele. Por isso, anulou todas as condenações, inclusive as que não tinham DNA.
“Foi um trabalho paulatino, cauteloso, demorado, mas que foi acolhido tanto pelo Tribunal de Justiça e mais especialmente pelo Superior Tribunal de Justiça nesse reconhecimento tão importante de inocência de um homem que tá preso há mais de 12 anos”, falou Flavia.
“A primeira falha identificada, ela acontece na investigação, no processo investigativo – que se satisfez com esse reconhecimento induzido pelas vítimas e que não foi atrás de nenhum outro tipo de prova. A gente não tem uma imagem de câmera de segurança, a gente não tem um localizador de celular que indicasse que ele estava naqueles locais, a gente não tem uma roupa, de peça, apreendida. A gente não tem nada além dos reconhecimentos”, disse a diretora do Innocence Project Brasil.
“Mas as falhas não terminam aí. Porque essa investigação que se satisfaz com o reconhecimento das vítimas é a mesma investigação que leva a uma acusação criminal, que leva a uma sentença condenatória e que leva à manutenção dessa condenação. Normalmente – e é o mesmo nesse caso – um erro judiciário é uma conjugação de falhas. Ele não nasce de uma falha só. E nesse caso, isso ficou evidente pra gente”, afirmou Flavia.
“O Carlos Edmilson foi condenado e a condenação foi anulada. Depois o [José] Reginaldo respondeu também porque o DNA [foi] reconhecido”, disse à reportagem o promotor Eduardo Querobim, que há quatro anos pediu para o IC realizar o exame no jardineiro.
Antes, o MP não havia solicitado esse exame de comparação genética. A Polícia Civil e a Justiça também não. Segundo autoridades ouvidas pela reportagem, não existe nenhuma lei que obrigue a realização do confronto de DNA em casos de estupro. A decisão de se fazer ou não tem de partir das partes envolvidas no processo.
O que diz a Secretaria da Segurança
“A Polícia Civil está ciente da decisão judicial e analisa todos os fatos. Constatada qualquer irregularidade na investigação que resultou no indiciamento do homem mencionado pela reportagem, as medidas cabíveis serão tomadas, inclusive com abertura de procedimento apuratório junto à Corregedoria. A Instituição destaca que exerce suas atividades dentro da lei, de forma rigorosa, imparcial, e preza por apurações minuciosas.”
Estupros atribuídos a Carlos que foram revisados e anulados:
2010
28 de dezembro – estupro contra mulher em Osasco
2011
5 de setembro – estupro contra mulher em Osasco
8 de outubro – estupro de mulher em Osasco
23 de novembro – estupro de mulher em Osasco
2 de dezembro – estupro de mulher em Barueri
11 de dezembro – estupro de mulher em Barueri
14 de dezembro – estupro de mulher em Osasco
2012
20 de fevereiro – estupro de mulher em Barueri
2 de março – estupro de mulher em Barueri
3 de março – estupro de mulher em Barueri
A reportagem também entrou em contato com o MP e com o TJ para saber se querem comentar a informação do Innocence Project Brasil de que todos eles falharam no caso que levou Carlos à prisão.
“A justiça é falha. Existe uma necessidade premente que essas pessoas que são vítimas do erro sejam ressarcidas. O Estado precisa, nesse processo de reconhecer seu erro, reconhecer também que é devedor de indenização”, disse a advogada Flavia.
“Foi um homem que perdeu 12 anos da vida dele, que tem uma mancha que é muito difícil de se tirar da vida. A pessoa não entra e sai 12 anos depois a mesma pessoa, e o mínimo na nossa compreensão que ela precisa ter é o amparo do Estado pra ela tentar reconstruir a vida a partir de agora”, afirmou.