Mandei cartinha e esperei Papai Noel até meus 11 anos e teria esperado por mais tempo não fosse uma amiga que se empenhou obsessivamente em tirar de mim a doce crença infantil da noite de Natal.
Na noite em que perdi Papai Noel, minha amiga e eu estávamos penduradas na mureta da frente de casa, contando meninices, quando ela puxou o assunto. E começou a desmontar minha fantasia com os argumentos dos adultos incrédulos.
Quis resistir, tentei com todas as minhas forças de menina sonhadora dizer a ela que o meu Noel viria trazer o meu brinquedo, como tinha feito desde que eu tinha tomado consciência do meu existir, mas a crueza dos dados da realidade acabaram me derrotando.
Não me lembro que argumentos usei – é muito difícil ter argumentos debaixo de um jato de água gelada. Me lembro de ter balbuciado coisas, mexido muito com o corpo, me lembro de minhas ideias rodopiando, de eu querendo fugir daquela conversa, mas a amiga estava firmemente interessada em me amargurar.
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Ela queria tirar de mim meu precioso tesouro, a inocente vibração de dormir esperando a visita do velhinho estrangeiro de roupa vermelha e bichos chifrudos voadores. A família da amiga incrédula tinha até mais condições de comprar bons presentes do que a minha, portanto, não era a inveja do brinquedo, da coisa real. Era a coisa irreal que a incomodava, aquilo que ela não via, não tinha, não acreditava e queria que eu também não visse, não tivesse, não acreditasse. Queria me roubar de mim mesma, a minha amiga.
Naquela noite perdi Papai Noel. Pouco depois daquela conversa melancólica, me mudei de bairro e nunca mais reencontrei a amiga desiludida. Minha sorte é que ela só conseguiu me roubar aquela fantasia, todas as demais ficaram intactas e me acompanharam até há bem pouco tempo.
Briguei feio a vida inteira para proteger cada uma das minhas fantasias porque sabia, intuitivamente, que sem elas eu morreria seca como planta arrancada da raiz. E lamento muito minhas ilusões perdidas, não há nada que eu possa fazer pra trazê-las de volta.
Ter esperado Noel até quase a adolescência demonstra meu pendor pra viver de ilusão, macia, doce e perfumada ilusão. Foi assim, de ilusão em ilusão, como quem salta de pedra em pedra sobre o abismo, que consegui atravessar a vida até aqui.
A ilusão foi embora, mas a palavra – esse signo ao mesmo tempo arbitrário e mágico – ficou. Com a magia de um Papai Noel que, na noite de Natal, escapa dos dicionários e sai voando pelos sonhos do mundo.
Houaiss e Aurélio definem a palavra ilusão de dois modos. Significa engano, erro, engodo. E tem também o sentido de sonho, quimera, utopia, fantasia.
Mas há outro dicionário, o precioso Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, que voa muito mais alto. Ele estende a definição das palavras às analogias possíveis. Ilusão pertence à categoria das coisas inexistentes, míticas, inventadas, alegóricas, fantasiosas, abstratas, subjetivas, fingidas, impossíveis.
Se com o passar do tempo, perdi as asas da ilusão, ainda posso reencontrá-las nas asas das palavras. Como essa que o Dicionário Analógico me oferece de presente de Natal: Entressonhar, uma analogia de se iludir. Pode-se até conjugar esse belíssimo verbo: Eu entressonho, tu entressonhas, nós entressonhamos. Papai Noel deve amar esse verbo. Entressonhemos, portanto.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.






