Uma investigação da coluna revela a atuação de um grupo criminoso que tem infestado a web com anúncios de medicamentos que viabilizam a prática do aborto. Desafiando a legislação, a quadrilha espalha as propagandas criminosas e faz delivery das drogas em plena luz do dia — e no centro da capital federal.
Nessa segunda-feira (8/12), a Polícia Civil do Rio Grande do Sul deflagrou a Operação Aurora, com o obejtivo de desmontar uma organização criminosa interestadual especializada no comércio clandestino de Cytotec (misoprostol) e no acompanhamento remoto de abortos.
Equipes policiais cumpriram mandados simultâneos em nove estados e no Distrito Federal. Três pessoas foram presas, e drogas, celulares e documentos foram apreendidos.
Segundo a delegada Karoline Calegari, da Delegacia de Guaíba, a quadrilha mantinha uma estrutura organizada, com vendedores fixos, canais de atendimento e até grupos de “acolhimento” para mulheres que buscavam interromper a gravidez.
O grupo oferecia não só o medicamento, proibido para venda no Brasil, como também orientações on-line durante o procedimento, conduzido sem qualquer suporte médico adequado.
Como funciona a engrenagem criminosa
A operação é coordenada. Há atendentes e entregadores com funções separadas. Antes da operação, a reportagem simulou uma compra. Como um remédio para dor de cabeça, o medicamento foi oferecido como sendo uma pílula inofensiva.
Diretos e objetivos, os criminosos não perdem tempo com saudações. Assim que são contatados por aplicativo de mensagens, vão ao ponto: “Está gestante de quantos meses?”, perguntam.
Depois da resposta, o comprador recebe um vídeo com os remédios e uma tabela de preços: “R$ 1.354 em Brasília. Oito comprimidos. Pagamento somente com o produto em mãos.” Para quem está em outro estado, há opção de envio pelos Correios: “Oito comprimidos mais o frete, R$ 810. Pagamento antecipado.”



Metrópoles
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Propaganda
A quadrilha investe em publicidade. Um link que dá acesso a um site com cerca de 50 depoimentos de compradores, contendo, inclusive, diversas imagens sensíveis é compartilhado com quem entra em contato com a quadrilha — ainda que não tenha sido feita, por parte do “cliente”, qualquer solicitação de comprovação da eficácia da droga.
“Veja alguns depoimentos de nossos clientes. Nosso site foi bloqueado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) a 5 meses atrás e perdemos cerca de 120 depoimentos. Mas, já temos quase 50 novamente”, informa o site.
A ação dos criminosos
Ao simular a compra, a reportagem questionou o vendedor sobre a possibilidade de o entregador descobrir o teor do produto. A resposta foi direta e revelou a operação coordenada:
“Mas claro que ele sabe o que que é, moça. É meu entregador aqui, entendeu? Pode ficar tranquila, não tem problema ele saber o que que é. Ele já sabe, na verdade”, afirmou.
Em poucos minutos, o acordo estava fechado. O número de telefone, com DDD de São Paulo, passou a comunicação para um segundo homem, identificado como o entregador do esquema.
O delivery
O próprio entregador sugeriu onde o encontro deveria ocorrer. Audacioso, escolheu uma quadra movimentada da Asa Sul, em uma rua tomada por comércios, na 204 Sul.
O integrante do esquema chegou ao local por volta das 11 horas. No entanto, diferentemente do que havia dito antes do encontro, quando disse que levaria o medicamento em uma motocicleta, dirigia um carro honda civic sedan preto, de vidros lacrados.
Vestido com camiseta azul e calça jeans, ele estava acima de qualquer suspeita no meio da multidão.
A coluna não efetuou a compra. Após perceber que não conseguiria completar a venda, o suspeito deixou o local.



O entregador foi ao local em um Honda Civic Sedan de vidros lacrados
Hugo Barreto/ Metrópoles
O contato é feito por meio de aplicativos de mnesagens
Hugo Barreto/ Metrópoles
O esquema opera nacionalmente
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O delivery opera em todo o DF
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Para outros estados, a quadrilha envia o medicamento por meio de transportadoras
Hugo Barreto/ Metrópoles
A investigação até a operação
A investigação da Polícia Civil do Rio Grande do Sul começou em abril deste ano, quando uma jovem de Guaíba procurou o hospital regional em estado grave, com dores intensas, e acabou expelindo dois fetos.
À polícia, ela relatou ter adquirido misoprostol pela internet após ser abordada em redes sociais ao pesquisar termos ligados a gravidez indesejada.
A mulher contou ainda que recebeu instruções detalhadas de uma suposta “doutora”, que deveria acompanhá-la por mensagem durante o aborto. No entanto, no momento crítico, passou a ser ignorada pela orientadora, sem qualquer tipo de assistência.
Grupo de acolhimento às clientes
Aos médicos do hospital, a mulher também revelou ter sido adicionada a um grupo chamado “Sinta-se acolhida”, voltado para relatos pós-procedimento e troca de dúvidas entre usuárias.
A partir do depoimento, a polícia conseguiu identificar os administradores do esquema, espalhados por Paraíba, Goiás, Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Distrito Federal e Rio Grande do Sul.
Os administradores eram os únicos autorizados a fechar vendas e acompanhar procedimentos. Mais de 250 mulheres estavam em grupos controlados pela quadrilha, indicando um lucro elevado.
A Operação Aurora pretende agora avançar na identificação de todos os envolvidos, mapear a origem dos medicamentos, já que o misoprostol só pode ser usado em ambiente hospitalar, e apurar a dimensão financeira da rede.
Tráfico e organização criminosa
A legislação brasileira proíbe a comercialização, distribuição e propaganda de medicamentos destinados à provocação de aborto, exceto nas hipóteses autorizadas por lei.
A coluna ouviu a advogada criminalista Tailândia Almeida, especialista em Direito Penal e Processual Penal. Segundo ela, os responsáveis pela venda, distribuição, anúncio ou entrega de medicamentos abortivos sem permissão legal podem responder por crime hediondo, com penas de 10 a 15 anos de reclusão.
Se houver envolvimento de organização criminosa, podem ser aplicadas penas adicionais. Dependendo do caso, também pode haver enquadramento por tráfico de drogas — caso os remédios contenham substâncias controladas — ou associação criminosa.
As punições não se restringem a quem comercializa. Quem adquire medicamentos abortivos também pode ser responsabilizado criminalmente.
O comprador pode responder por porte de produto de procedência ilícita. Se fizer uso do medicamento para provocar aborto, aplica-se o artigo 124 do Código Penal, que pune a gestante que interrompe a própria gravidez ou quem a auxilia, com pena de detenção de um a três anos.
Mesmo a tentativa de compra ou a posse do medicamento, sem justificativa legal, já pode gerar responsabilização penal.
“Em suma, a venda ilegal de abortivos é uma infração grave, com penas severas no Brasil. As punições vêm sendo intensificadas e fiscalizadas — tanto para os responsáveis pelo comércio quanto para quem efetua a compra. A atuação preventiva inclui denúncias ativas, ações do MPF e propostas legislativas em curso para agravar penalidades”, explicou.
A advogada alertou ainda que, além de ilegais, esses produtos representam grave risco à saúde da mulher.









