A constatação é triste: 72% da população mundial vive hoje em países não democráticos, ditaduras ou autocracias eleitorais. Na última década, as ditaduras subiram de 22 para 33, enquanto os sistemas democráticos caíram de 44 para 32. Sobe também o número de democracias falhas, um modelo híbrido que abriga componentes de regimes autocráticos e democráticos, onde ocorrem falhas na aplicação de princípios e valores, como liberdade de imprensa, independência entre os Poderes, repressão policial, ameaças de golpes, integridade do sistema eleitoral, entre outros.
Tal constatação tem como fonte uma pesquisa feita pelo Instituto sueco, V-Dem, da Universidade de Gotemburgo. A escalada autoritária é uma ameaça ao equilíbrio entre as Nações. Nos últimos tempos, o planeta vive sob o temor de que uma nova Guerra Fria, que poderá ser o estopim de um conflito de proporções mortíferas para a Humanidade. China e Rússia, juntos na estratégia de eliminar o poderio ocidental, capitaneado pelos Estados Unidos, e tendo como pano de fundo a tragédia que se abate sobre a Ucrânia, empurram o planeta na direção do precipício. Semana passada, vimos Vladimir Putin, o todo poderoso mandatário-mor da Rússia, falar alto: “Se a Europa quiser guerra, estamos pronto”.
Afinal, o que ocorre com as democracias? Estão morrendo? Assistem, inertes, ao desvanecimento de sua base? Não têm resistido ao volume crescente da violência, que invade os ares da liberdade? A luta do poder pelo poder, sem as luzes das ideologias e doutrinas, seria uma volta ao nosso passado ancestral?
São questões cruciais. Que já mereceram análises de cientistas políticos. A afamada obra Como as democracias morrem, dos professores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, faz importante observação para entendermos a vida contemporânea. A tese principal dos dois autores é a de que os sistemas são corrompidos por meio da perversão do processo legal, significando que os governos legitimamente eleitos subvertem os meios que os levaram ao poder.
Na América Latina, basta ver os golpes militares, no Brasil (1964), na Argentina (1966), no Chile (1973), no Uruguai (1976) e os movimentos de tendência golpista, que ocorrem aqui e ali, a escancarar a instabilidade das instituições representativas, a militarização da vida política e cerceamento da liberdade política e de expressão.
Até a maior democracia ocidental, a norte-americana, tem sofrido ameaças, a partir da eleição de Donald Trump e sua pregação antidemocrática. Ali, nunca se viu tanta pregação contra os eixos da democracia.
A crise, como se sabe, é crônica, se arrasta há tempos. E onde estão suas raízes? Norberto Bobbio, o cientista social e político italiano, em sua clássica obra, O Futuro da Democracia, levanta a questão: as democracias não têm cumprido seus compromissos para com as comunidades.
Promessas não cumpridas caracterizam uma sociedade pluralista, com seus vários centros de poder, com o domínio das oligarquias que procuram preservar suas tradições e, ainda, com a força do poder invisível, que age nos subterrâneos do poder visível, representado pelo Estado. Basta ver a expansão das gangues e do crime organizado, hoje presentes em praticamente todos os países da América Latina. Calcula-se que cerca de 40% dos homicídios globais estão ligados ao crime organizado e à violência de gangues, que são prevalentes nas três Américas,
A incultura política campeia. Bobbio é enfático: a apatia política chega a envolver cerca da metade dos que têm direito a voto. É pouco. Em nosso Brasil, a imensa maioria do eleitorado ainda vegeta no terreno que se chama de “cidadania passiva”.
As promessas não têm sido cumpridas por causa dos obstáculos e desafios impostos por uma sociedade que saiu de uma economia familiar para uma economia de mercado, ou seja, uma economia planificada, que abriu a era do “governo dos técnicos”, e trouxe, em seu arcabouço, sérios problemas, como desemprego, inflação, aumento das desigualdades, competição desvairada, violência.
O rendimento do estado democrático sofre queda e, em muitos países, os sistemas governativos tornam-se ingovernáveis. As tensões entres Poderes (caso do Brasil) contribuem para a instabilidade institucional. As ingerências de um Poder sobre outro se tornam constantes, a ponto de se considerar que funções legislativas são absorvidas pelo Poder Judiciário, como ocorre, hoje, por nossas bandas. Basta olhar para a recente querela entre o STF e o Senado Federal e sua acusação recíproca de invasão de competências.
O STF até parece uma gigantesca delegacia de polícia, a julgar vândalos. O Poder Executivo, por sua vez, encabresta o Poder Legislativo, com sua articulação para cooptar parlamentares com liberação de recursos e outros meios de atração, como cargos e espaços na estrutura administrativa.
Em um ensaio alentado, os professores e pesquisadores Fernando Limongi e Angelina Figueiredo explicam: “o padrão organizacional do Legislativo brasileiro é bastante diferente do norte-americano. Os trabalhos legislativos no Brasil são altamente centralizados e se encontram ancorados na ação dos partidos. Ademais, enquanto o presidente norte-americano possui limitados poderes legislativos, o brasileiro é um dos mais poderosos do mundo. … da mesma forma, não é possível desconsiderar os poderes legislativos do presidente.”
O fato é que o exercício da governança se torna cada vez mais complexo. Os interesses grupais e individuais suplantam as demandas coletivas. A conquista do poder, a qualquer custo, é a meta que transforma a política em uma arena de lutas. Sob essa paisagem conflituosa, golpes, insurreições, movimentos de ruptura, ancorados nos quartéis e nas armas, são os novos componentes que corroem os vãos e desvãos das democracias, tornando o mundo mais autoritário.
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor-emérito da ECA-USP e consultor político






