27 novembro 2024

‘Meu coração dizia que ele não tinha morrido’, diz mãe que reencontrou filho sequestrado após 34 anos no AC

spot_imgspot_imgspot_imgspot_img

“A gente nunca deve desistir”, a frase que poderia soar clichê se dita por outra pessoa, vinda de Iraci Feitosa da Silva, de 67 anos, é apenas o resumo da história dela e do filho, o vigilante acreano Francisco Josenildo da Silva Marreira Tigre. Dos 48 anos de vida, ele ficou 34 anos desaparecido, separado da família biológica e, principalmente, da mãe que, mesmo após três décadas, nunca desistiu da possibilidade de reencontrá-lo.

A história começou quando o pai de Josenildo foi assassinado em Rio Branco, em 1983. O menino, que tinha 11 anos quando foi raptado enquanto vendia salgados, é o mais velho entre os sete filhos da técnica de enfermagem aposentada Iraci Feitosa da Silva, que tinha 31 anos quando ele desapareceu.

Naquela época, ele tinha o desejo de vingar a morte do pai. Ela, porém, tentava tirar a ideia de vingança da cabeça do menino a todo custo, parecia prever a trama que os separaria, em 1987.

“Ele encontrou com essa mulher que disse que era a mãe dele, que não era eu. Ele botou na cabeça que queria vingança pela morte do pai dele. E eu tentava tirar da cabeça dele, dizendo: ‘seu pai não vai voltar se você fizer isso, você vai complicar sua vida, você é criança, pare com isso’. Ela levou ele, e ele fugiu dela, e daí ficou andando pra cima e pra baixo”, disse a mãe ao g1.

Reencontro de Francisco Josenildo e Iraci Feitosa aconteceu há quase dois anos em Rio Branco — Foto: Arquivo pessoal

Reencontro de Francisco Josenildo e Iraci Feitosa aconteceu há quase dois anos em Rio Branco — Foto: Arquivo pessoal

A mulher, cuja identidade e paradeiro são desconhecidos, é apontada como responsável pelo rapto do menino, que vendia salgados em frente ao hospital onde a mãe biológica trabalhava. A promessa ao menino era de que ela conhecia a história dele e que levaria Josenildo até o local onde o pai foi morto, para que ele pudesse “acertar as contas” com o homem que matou o pai.

“Foi isso que me levou a acompanhá-la. Eu disse: ‘‘Então eu vou’. Ela me prometeu que me levava. Chegamos na rodoviária, permanecemos em um hotel, no dia seguinte a gente pegou o ônibus e fomos pra Porto Velho. Chegando lá, esse senhor [dono de uma carreta com a qual ela tinha conversado no dia anterior] já estava lá esperando, e de lá seguimos com ele pra Florianópolis“, disse Josenildo.

Ao chegarem à cidade do Sul, ela deixou o menino brincando em um local e sumiu. A partir de então, ele começou a perambular pela cidade atrás dela, mas não a encontrou.

“Aconteceu tanta coisa na minha vida que fiquei com o intuito de voltar para o Acre, porque eu tinha lembrança de Porto Velho e Acre. Fiquei procurando voltar. Pedia para umas pessoas para me trazer, algumas não queriam, então eu subia nas carretas, nos estepes e para onde Deus me levava eu ia. Fiquei rodando até chegar no Acre de volta”, relembrou.

Trajetos

De fato, as paradas de Josenildo foram várias. De caronas a idas irregulares e perigosas nas partes traseiras dos caminhões, ele chegou a Cáceres (MT), a mais de 2 mil km de Florianópolis. De lá, seguiu rumo a Cacoal (RO), onde conseguiu uma carona com um caminhoneiro que iria à cidade rondoniense.

Ao chegar a Porto Velho (RO), ele viu uma carreta com o nome “ACRE”. Após receber uma recusa na carona, ele viajou escondido no veículo até chegar ao estado acreano e encontrar uma mulher que o viu sozinho na rodoviária pedindo comida. Até aí, quase sete anos já haviam se passado desde o rapto.

“Ela perguntou se eu morava na rua. Eu disse que morava sozinho, na rua. Ela perguntou se eu não queria ir morar com ela, para o rumo de Brasiléia [distante mais de 230 km da capital Rio Branco]. Eu fui”, falou.

Enquanto isso, Iraci seguia na busca pelo filho primogênito. Ela descreve como ‘desesperadora’ a procura por Josenildo que, até então, sem ela saber, havia cruzado o país em busca de vingança.

“Eu sempre tive muita fé em Deus que eu ia conseguir ver meu filho de volta. Eu nunca achei que tivessem matado ele, ou que ele havia morrido. Pedi muito a Deus e a Nossa Senhora que trouxesse meu filho de volta. Eu andava por todo canto, falei nas rádios, na PM”, disse, mesmo estando mergulhada em sentimentos depressivos naquela época.
Família adotiva
Antes de ser, definitivamente, adotado, Josenildo passou por duas famílias anteriores, que ele não se adaptou. Em uma das desavenças com a segunda família que o recepcionou, ele conheceu o seringueiro Sebastião Tigre, que o chamou para morar junto com ele e a família.

Com emoção, ele relembra dos momentos felizes que viveu com os pais adotivos em um ambiente familiar onde foi registrado no cartório, cresceu e se criou. Inclusive, destacou que a mãe adotiva, Zinha Tigre, foi a maior incentivadora para que ele relembrasse seu passado e procurasse a mãe biológica, já que os traumas vividos na adolescência fizeram com que ele “deletasse da mente” os traumas vivenciados com tão pouca idade.

“Eles fizeram o que eu sou hoje, minha mãe me criou, foi tudo para mim. Foi tanta coisa que eu passei que fiquei na mente que ela tinha me largado. Só que minha mãe adotiva conversava comigo, forçava minha mente para que ela pudesse me ajudar a encontrar a minha mãe biológica. Mesmo eu não gostando, ela conversava comigo dizendo que eu tinha que saber da minha história, que ninguém ia me tirar dela, até porque ela já tinha me registrado, e ficava me lembrando dessas coisas”, disse.

Zinha teve câncer, anos depois, e após seis anos de tratamento, morreu no final da década de 1990, quando ele tinha entre 18 a 20 anos. As datas não são muito claras nas lembranças de Josenildo, que diz não guardar épocas específicas na mente.

Depois que ela faleceu, há 25 anos, ele desistiu de procurar saber do passado. Até que, já casado e com filhos, teve um sonho que consistia na mãe adotiva dizendo o nome da mãe biológica e pedindo para que ele fosse atrás. Naquele momento, Josenildo acordou atordoado lembrando do local onde a família morava — e mora até hoje. Coincidência ou não, ele já havia passado pelo local outras vezes. Em 2014, então, resolveu reiniciar a saga de procura pela família biológica.

O reencontro
“Eu ia passando de frente à casa, me veio a lembrança de que era ali. Eu parei, minha tia saiu de casa, me viu e eu voltei. Ela ficou olhando, eu fui até ela, perguntei se ela conhecia a pessoa, que no caso é a minha mãe. Falei o nome e ela perguntou se eu era o Josenildo. Ela já desconfiou, eu fiquei sem jeito, já me chamou para dentro, e ficou no corre-corre. Fizemos o exame de DNA e deu certo”, diz.

A tia a quem Josenildo se refere é Clarice Feitosa da Silva, de 75 anos, que chamou a mãe para tirar a “prova dos nove”.

Ao vê-lo pessoalmente, precisou ser socorrida por médicos, já que não aguentou a emoção que sentiu no momento. Agora ela está com a família completa: os sete filhos e oito netos, sendo quatro só de Josenildo.

“Passei mal, mas é assim mesmo, coração é fraco. Quando eu vi e abracei ele, eu não aguentei, desmaiei. Fui pro hospital, mas voltei. Estamos todos felizes. Agora estamos uma família unida, pobres mas humildes. Um apoia o outro. Graças a Deus estamos com essa vitória. Ele já voltou foi com esposa, dois filhos. Aumentou foi a família”, disse. 

Parte da família biológica de Francisco Josenildo, em momentos de comemoração em Rio Branco — Foto: Arquivo pessoal

Parte da família biológica de Francisco Josenildo, em momentos de comemoração em Rio Branco — Foto: Arquivo pessoal

Adaptação: 2 nomes e 2 datas de aniversário

 

O tão sonhado reencontro aconteceu há quase dois anos, no Conjunto Esperança 1, bairro de Rio Branco onde a família biológica mora há cerca de 50 anos. Entusiasmado, Josenildo diz que agora tem seis irmãos biológicos e 11 adotivos, os quais ele ainda é muito apegado.

“Para eles, eu sou o irmão que eles nunca tiveram. Mexeu com um, mexeu com todos. Tem uns que moram fora, mas a gente sempre está se falando no grupo da família. Eles gostaram [quando eu reencontrei a família biológica] mas não largaram do meu pé não, tem até ciúmes. Eles me consideram demais. Família já era grande e agora ficou maior ainda”, falou.

Casado há 16 anos com Andréa Ferreira, Josenildo tem quatro filhos. Sobre a “nova” família, ele comentou que está se adaptando com a convivência, e que ‘vira-e-mexe’, nas folgas de trabalho, está na casa deles para tentar recuperar as mais de três décadas perdidas.

“É uma coisa gratificante. Eu vivia uma realidade e a minha história era completamente outra. Estou me adaptando por isso, mas é bom. É como se estivesse dentro de uma prisão e de repente ganhasse a liberdade. O que passei a vida inteira preso achando que era uma coisa, mas na verdade a história era outra. Agradeço a Deus por ter me permitido viver isso. É inexplicável”. 

A mãe biológica também é só gratidão, tanto por ter encontrado o filho perdido, como pela família que cuidou dele durante tanto tempo. “Já comemoramos aniversário, o aniversário dele será dia 1º de julho. Então vai ser comemoração boa. Todo mundo se fala todo dia, e quando dá final de semana juntamos as panelas”, falou.

Além da adaptação com a família biológica, ele também fala de outros dois desafios, sendo o primeiro o nome atual, que agora é Francisco Josenildo Araújo Marreira Tigre: uma mistura de Josenildo da Silva Marreira [nome de batismo] e Francisco Araújo Tigre [nome dado pela família adotiva].

O segundo desafio é a idade. Quando foi registrado pela família biológica, ficou com cinco anos a menos, comemorando o aniversário em 4 de outubro de 1980, em alusão a São Francisco de Assis. Agora, com a redescoberta de sua origem, ganhou os cinco anos novamente, já que a data oficial de nascimento é 1º de julho de 1975. “Agora eu envelheci cinco anos, estou me acostumando com isso também”, brincou.

Josenildo tem 11 irmãos adotivos e seis biológicos; ele diz que agora a família é uma só — Foto: Arquivo pessoal

Josenildo tem 11 irmãos adotivos e seis biológicos; ele diz que agora a família é uma só — Foto: Arquivo pessoal

A lição deixada por Iraci é de que o mais importante é não desistir. Segundo ela, a esperança é a última que morre — o que não aconteceu com ela.

“Foram 34 anos [esperando] mas agora estou feliz. A gente nunca deve desistir porque as pessoas me diziam: ‘a senhora tá enganada, ele deve ter morrido’, mas eu dizia: ‘olha, meu coração dizia que ele não tinha morrido e eu vou conseguir ver meu filho, embora seja a última coisa que eu faça na vida’. E consegui. E não foi a última coisa que eu fiz na vida”, celebrou.

Por Renato Menezes, g1 AC — Rio Branco

Veja Mais